(Des)Contos

Título: Continhos de Alfarrobeira     clique aqui para link completo
Autoria: Alexandra Pereira, 2006
Edição Online   1.ª Edição – Abril de 2007   | Capa e grafismo: Rui Justiniano
SINAPSES Editora
Urbanização Quinta das Lágrimas, lote 1, 1º Esq. Frente, 3000 Coimbra 

CRISTAIS COMO NÓS

(AULA DE GEOLOGIA SOCIAL)

Neste prédio típico, numa rua típica do Bronx, habita uma família peculiar: a mãe é transparente, o pai transparente e o filho cor de vidro. Da primeira vez que me cruzei com eles na escada contagiei-os de verde, agora tenho o cuidado de pôr sempre sal nos bolsos para não desbotar a minha cor se por acaso encontrar o clã no caminho. Da última vez deu-lhes uma trabalheira e algum prejuízo terem de passar o resto do dia de molho num tira-nódoas verdadeiramente eficaz… Curioso é o facto de as suas expressões nunca se alterarem grandemente – ou então sou eu que não dou pela alteração, o que também é provável dada a ausência de tonalidade ou sombra… –, isto tendo em conta que em nenhuma outra ocasião poderia a expressão “tem uma alma translúcida” ser aplicada com maior propriedade. Ao espelho do elevador não vejo ninguém quando subo com eles, contudo os sapatos e os atacadores estão lá, assim como os acessórios de mulher (a malinha de mão e os brincos da mãe) e a mochila escolar do miúdo, pouco distante do seu skate. Na realidade, estou a ser pouco preciso: para além desses objectos pessoais, uma outra coisa está, como é óbvio, muito presente: no caso, a voz e os sons. A voz do pai é árida e fria, com um travo de mel na direcção do garoto e uma rouquidão de charuto inconfundível; a mãe fala como se estivesse agachada debaixo dos móveis ou escondida atrás da porta ou pisando um charco de piranhas ou procurando não despertar um ladrão (ultimamente tenho notado alguma tensão matrimonial); o filho produz uma grande variedade de sons guturais nas brincadeiras bélicas com que invade o ascensor, o átrio do prédio ou mesmo os patamares da escada, dizimando plantas de andar em andar; a sua voz de meio-soprano pré-pubertária evola um denso véu de neblina pedinchona e caprichosa, ao jeito de poluição sonora, em torno dos restantes inquilinos, afectando-lhes gravemente a saúde dos pulmões consumidores, pelo entupimento brônquico que as constantes exigências produzem ao calcular mental e involuntariamente, o incauto vizinho condicionado aos cifrões, a soma que a satisfação dessas mesmas exigências implicaria. Assim se têm multiplicado desmesuradamente as infecções financeiras por todo o prédio, patologia das sociedades capitais de resto mortal na mesma proporção em que a tísica ceifou vidas no início do outro século. Moléstia negra, ostracizante de facto.

Um outro sentido permite distinguir claramente a presença da família invisível: pelo olfacto é-nos dada a conhecer a preferência do pai em relação às águas de colónia frutadas, o gosto da mãe pelos perfumes quentes ou a data da última partida de basquetebol do miúdo sem recorrer ao carbono catorze (embora isto exija um grau de precisão nasal só ao alcance de algumas elites treinadas – autênticos espeleólogos olfactivos – ou, em alternativa, dos cães-polícia da vigésima primeira esquadra). O cão da família passa mais despercebido, na medida em que só a trela carmesim, quando a traz, o denuncia – é assim que o mais distraído passeante pode sujeitar-se, sem que dê conta, a uma mordidela imprevista em lugar incerto. Dir-me-ão que isto constitui uma pura utopia, todavia não representa senão a mais cristalina verdade dos factos, neles botando as raizes e deles extraindo, espargidos, longos ramos. Nestes indícios e perigos do que é translúcido, que vos venho descrevendo e nos quais qualquer um pode incorrer, não há nem mais nem menos que a realidade da experiência e o conhecimento de causa da ficção. Na verdade, o mundo transparente imita o opaco numa diversidade de situações (que, pelo atrás entrevisto, ficaria lato aqui expor), contando-se ao fim e ao cabo muito mais semelhanças que divergências entre eles – e resulta esta conclusão da acurada leitura comparativa que tenho dedicado à matéria nos últimos anos, aproveitando a tribo do quarto esquerdo para o desenvolvimento dum estudo de caso longitudinal, com complexas variáveis envolvidas, bem entendido, mas convenhamos igualmente que fascinante no seu cerne histórico-político-filosófico-social, extremamente rico em magma daquele cariz científico que em geral se associa à investigação. Tenho verificado que, ao contrário daquilo que à primeira vista se poderia pensar, o mundo transparente comporta em si os mesmos elementos e modos relacionais que o nosso mundo, só que com a diferença de não poderem ser vistos. O conhecimento da sua existência é-nos dado pela verificação das consequências dos actos ou a observação de acessórios mais ou menos secundários que acompanham uma determinada situação.

Aqui no Bronx as pessoas conhecem-se umas às outras e, em regra, desconhecem os estranhos que se aventurem por estas ruas – mas como reconhecer o que não se vê? Esta é uma questão pertinente. Não posso dizer do meu vizinho do quarto esquerdo que “conheço a sua cara dalgum lado”, e isto levanta todo um problema de definição da Identidade, aliás truncada, no mundo transparente. Na realidade, dizer que pai e mãe são transparentes e o filho cor de vidro não basta, é necessário algo mais sob pena de o indivíduo se ver desorientado, melhor dizendo à nora. Em relação a si próprio, não saber quem é… E quem é que lhe vai dizer o que é que ele é? Nós: definindo-lhe uma identidade. Bom, uma característica comum aos espécimes transparentes, amplamente divulgada e dispersa nos seus sub-grupos (que também os há, e disso falaremos mais adiante), é a sua agressividade. Uma agressividade naturalmente e sobremaneira exacerbada em relação ao que é uso comum entre os seus co-habitantes visíveis (e falta aqui registar que, por ocorrência fortuita, eu sou opaco – opaco opacíssimo, e por ocorrência fortuita não é bem assim: pelo facto de os meus ascendentes serem dois opacos de estirpe pura que se fossem, por exemplo, uma opaca e um translúcido, eu já sairia invisível à vista…). Quer isto dizer que, por uma questão de combinação matemática e leis genéticas, a população transparente está em maioria – o que me torna parte duma burguesia social de certo modo privilegiada, por ter o dom da cor e do riso ao espelho em sinal de contentamento. Privilegiada excepto num âmbito: o facto de sermos visíveis deixa-nos mais facilmente à mercê dos predadores, ao abandono de todo o género de marginais, pelo que temos de arranjar instrumentos de vigilância à altura dessa quase-fraqueza inata. Por outro lado, há que reconhecer que a transparência constitui uma vantagem para quem quer ludibriar os outros – daí que os seres invisíveis mostrem maior propensão para a criminalidade, sem dúvida (e tenho aqui estatísticas levadas a cabo por entidades independentes que demonstram isso mesmo).

O mundo transparente abarca diversos sub-grupos de indivíduos: os ascetas, que não se vêem senão orando e caminhando sempre estrada fora para parte incerta (têm uma vida religiosa e espiritual muito forte, que os preserva de quase tudo e os afasta da realidade concreta em que o comum dos visíveis vive; são sobretudo mulheres), os negociantes (a larga maioria, homens e mulheres de negócios, bem sucedidos e capitalistas ao máximo), os conservacionistas (dedicados a manter a memória das tradições herdadas ao longo de séculos, são conhecidos pela sua sensatez e perseverança; este sub-grupo é constituído maioritariamente por jovens), os abolicionistas (pretendem criar sub-culturas totalmente novas, arrancando por conseguinte todo e qualquer pedaço herdado no tempo das vivências modernas e urbanas; querem criar um mundo novo e absolutamente original, derretendo em cera todas as tradições e instituições ou hábitos estabelecidos para começar tudo de novo, porventura de forma absolutamente diferente) e os animais (estes representam uma vida orgânica perfeitamente satisfeita, longe da metafísica e das preocupações ambientais, sem grande vida intelectual ou conflitos éticos de qualquer espécie; reflectem a estereotipia da modernidade e estão ligados de forma privilegiada ao que é primitivo; como a ética, também a estética e o belo lhes são alheios: um animal não admira uma estátua, cobiça um gelado). Não será difícil conceber que os nossos dispositivos de segurança têm de se adaptar preferencialmente a este ou àquele sub-grupo, podendo estabelecer-se uma hierarquia de perigosidade para estes seres tão intrigantes quanto funestos: animais, negociantes, abolicionistas, conservacionistas e ascetas atacam em escala decrescente os membros do mundo visível. Poder-se-ia pensar que os abolicionistas, pelo carácter extremo da sua ideologia, constituiriam muito maior ameaça à nossa segurança, no entanto eles procuram destruir as heranças do mundo transparente, tornando-se de facto verdadeiros aliados da cultura e dos entes opacos, minoritários como já se disse.

Confesso que é estranho estender a mão em sinal de cumprimento e não saber se o outro me estará a fazer um manguito. Esta ambiguidade torna as relações difíceis entre as comunidades visível e invisível. Além de hábitos alimentares distintos (os sujeitos transparentes não digerem o glúten, são mais sensíveis aos raios solares – queimam-lhes as extremidades do corpo – e denotam muito maior cupidez, por isso se dedicando com tão grande regularidade ao negócio), nós celebramos o Natal a vinte e cinco e os “cristais” (assim alcunhamos os membros da comunidade transparente) a doze de Dezembro, e os nossos filhos são baptizados numa igreja diferente do barracão onde se iniciam os “quartzos” na respectiva doutrina, ou seja, os pequeninos filhos dos cristais, acabados de vir ao mundo. Ser transparente tem uma clara vantagem: não se aparece nos jornais e, para todos os efeitos, não existe a pessoa que praticou tal ou tal acto escandaloso, senão que é inferida a sua existência. Não dá a cara, não faz trejeitos nem gestos belicosos, não conta nada: a pessoa transparente é uma reificação abortada dos conceitos abstractos “etnia” ou “classe”. Esses conceitos não precisam de coisificação porque se bastam a si mesmos – como os de raça, género, partido. Isto no caso dos transparentes.

No nosso caso (da gente visível e mostrável, quero dizer), individualização é sinónimo de humanização, respeito pelos direitos dos outros, bondade, convergência na diferença; nunca de competição, isolamento, reducionismo, pobreza, mesquinhez, coisa sovina. Daí que eu não confie lá muito nos cumprimentos do meu vizinho e me encoste ao espelho do elevador de cada vez que me apercebo da entrada dalgum cristal. Também não deixo o meu miúdo jogar basquetebol com o terrorista invisível, não vá o outro distribuir cotoveladas a torto e a direito ou cometer faltas que o meu não tem maneira de provar, e só a ideia de que a minha mulher (que sempre gostou de águas de colónia frutadas) pode ter um amante que eu não enxergue nem alcance põe-me doente. Por isso tenho passado os dois últimos anos – confesso-vos, não sem algum vexame… – a espiar os costumes e as modas da tribo do quarto esquerdo (sobre a vida sexual dos cristais, já agora, também temos algumas anedotas: escusar-me-ei a contá-las aqui), espiando em particular o pai de família, que muito me deixa a desejar em termos de confiança. Tenho escondido diversas cassetes na cómoda do quarto: as gravações contêm, em geral, uma estranha tosse pigarreia… Agora, depois de ter confessado a minha cisma apreensiva e explanado o tema, vou pousar os binóculos e fazer o jantar, se me dão licença.

 

 

FEITIÇO DE DONA DIVINA

 

Foi quando passeava pelos Jardins de São Pedro que encontrei Jacques Combo dentro duma bola de cristal. Dançava, dançava. Construía devagar o silêncio do tempo. Vinha muito pálido no interior da esfera, que assumia diferentes tonalidades em função do ângulo de incidência dos raios solares, conforme as bolhas de sabão que as crianças soltam das mãos entre risadas parvinhas no contexto de certas brincadeiras conhecidas. Bom, Jacques trazia um gorro na cabeça, inspirava o ar fresco através dum tubo às riscas grenat que saía pelo topo da bola de cristal, sobretudo sorria. Dançava um pouco, rodopiava satisfeito dentro da bola logo depois, como um fantoche gorducho que balançasse para um e outro lado, parava para inspirar pelo orifício da palha, sorria de novo. Ficou alguns instantes a observar-me muito atento com esse rosto exangue de zombie. Olhos perscrutadores num garoto curioso – penso agora. Estava feliz e solto, nesse Outubro de 1955, Jacques Combo. Foi conhecido entre os familiares de negócios como o prestidigitador do ofício, homem-maravilha nas ferragens Combolero, fazendo estremecer demais concorrentes.

Tinha o hábito grotesco de não usar sapatos atados e assim dentro da bola de perna bamba, pezinho frouxo, bem se notava o desleixo. Fiozinhos-spaguetti a escorrerem-lhe da barriga dos pés de modo inevitável, onde é que já se viu num senhor tão respeitado? Dentro da esfera vinha atirando ao ar papeluchos prateados sem mais não, numa excitação desbragada de chuva de estrelas cadentes que não fazia o mínimo esforço por reprimir, e acenou-me reverente com um copo de vodka em jeito de brinde – era a sua festa privada e excêntrica, talvez até um pouco decadente. Perguntei-me onde teria ele ido buscar semelhante engenhoca, que mais parecia saída dum manuscrito de Júlio Verne e mandada construir por medida para o corpo do fazendeiro do que resultante dos planos do próprio Combo, ou de qualquer inventor frustrado com o qual confraternizasse. Saltou-lhe um soluço da garganta enrouquecida, um cumprimento envergonhado quando me viu (como alguém que parasse em pleno sambódromo para cumprimentar um vago conhecido, desenhando uma pequena pausa na folia), mesura um tudo-nada indistinta. Comia uma banana madura, cor de areia, que segurava a custo na mão esquerda: já não me espantou esse costume enraizado de fruta favorita, sendo do conhecimento geral os hábitos alimentares enviesados que afamaram Jacques de homem-macaco: comia dezenas de bananas por dia, sob a forma de batidos ou bolos, fritas, assadas, em gelado, cruas, cestos inteiros de frutas cheirosas e alouradas que as suas copeiras preparavam com uma paciência infinita, sacrificando-se ao enjoo que essas tarefas repetitivas muitas vezes lhes causavam; chegara até o dia em que correra na cidade o boato de que Jacques Combo era um autêntico fenómeno, um homem que ficara grávido, tal era o seu desejo de bananas. Era um autêntico tragalhadanças, assim desordenado: vestia calças de riscas brancas e tão grossas como tranças de cabelos de velha em fundo negro, mais um paletó de mágico com abas da cor do vinho escorrendo-lhe pernas abaixo. Agora imagine-se a figurinha um pouco balofa, lívida como roupa corando ao sol, a passear por essas calçadas nestes preparos, ainda por cima dentro duma bola de cristal com periscópio, eufórica duma felicidade incompreensível senão ao abrigo etílico do vodka surtindo um belo efeito.

Além das ferragens Combolero, a família de Combo detém direitos e usufrutos sobre a maioria dos bananais – a bananeira, essa árvore sagrada duma religião exuberante cujo guia espiritual seria Jacques – que povoam os arredores da cidade (porque os campos de bananeiras estendem-se aqui com a velocidade dos cogumelos em estufas preparadas nas condições ideais de cultivo, a perder de vista como os arrozais doutras paragens), bem como sobre os homens e mulheres que nesses campos trabalham e habitam, e que são na ordem dos milhares. Jacques casou a mando do pai com uma galdéria um pouco velhaca, sua vizinha e amiga de infância, com vista à junção de terras: uma mulher que era um tronco humano em termos de sensibilidade e beleza, porém milionária duns milhões de se lhe tirar o chapéu: dona Agualva, a filha mais velha – e ao que parece “enxertada” numa antiga criada, à maneira daquilo que faziam os monarcas quando as esposas respectivas não eram boas parideiras – dum bancário espanhol imigrado nestas bandas após fraude graúda na terra-mãe, e que tinha a particularidade de usar sempre um chapéu de feltro da cor do mirtilo com o qual, ao que consta, foi enterrado. Pois bem, Jacques era latino e Agualva mulata mas o coração dele levava sangue, o dela só admitia escopro para talhar a pedra – mesmo assim era uma luta vã com a matéria-prima.

Entre os camponeses que moravam em barraquitas de tábuas minúsculas no meio dos extensos bananais inundando os campos havia uma ou outra palhota das chamadas feiticeiras. Estas eram mulheres de dons extraordinários, carregando no ventre uma sabedoria ancestral que exigia estranhos rituais para ser transmitida às aprendizas mais novas, nomeadamente uma lavagem da boca com alho um tanto ou quanto custosa, cambalhotas diversas pelo chão duro, a feitura dum prato específico onde se conjugava farinha, aguardente, fruta-pão e papa de milho, danças desequilibradas em torno de uma das barracas – no caso, a da feiticeira-mãe encarregue pela aprendiza respectiva – e quarentena em relação a qualquer tipo de carne (embora o peixe pudesse comer-se sem constrangimento algum durante esse período). Nas monções era um dilúvio, a enxurrada levava chapas de zinco a boiar campos fora – aliás, a fronteira entre os campos e o mar tornava-se absolutamente indistinta enquanto durasse essa época do ano – e seres humanos poisados nelas como mosquitos ou a gritar por socorro agarrados às copas das mangueiras ou bananeiras, fincando unhas nas folhas odoríferas da ramagem, formigas ao vento e à mercê da torrente.

Dona Agualva – que morava numa mansão separada duas léguas da fazenda do marido, fazendo extrema com ela mas raramente a frequentando, por se considerar de classe superior aos campesinos que pelo fim da tarde a enchiam com notícias de manadas tresmalhadas e colheitas destruídas – vestiu um dia o seu melhor fato (um tailleur preto de marca imponente, colar de pérolas verdadeiras vindas das ostras do Pacífico expressamente para o guarda-jóias caprichoso da madame), pintou os lábios com as borraduras mais sofisticadas que se avistavam nas avenidas de Paris e, para espanto geral da criadagem, em vez de se dirigir ao aeroporto rumo a uma das capitais mundiais dos desfiles Lagarfeld daquela época foi bater à porta da feiticeira mais conceituada nas redondezas (sendo que o perímetro do prestígio incluía a fazenda do marido, Jacques Combo). Entre os empregados dum e doutro – que nunca chegariam realmente a misturar-se nas tarefas, e que no entanto confraternizavam entre si com o à-vontade observável entre familiares muito próximos – corriam nessa altura boatos mais que testemunhados pelos empregados dum e doutro igualmente, embora acima de tudo circulassem ditos trocistas, anedotas a respeito do casamento dos patrões, ou melhor, de como dona Agualva tinha já dezenas de cabeças de boi nacionais e internacionais por inventariar a pastar entre os seus bananais na região de TerraSanta, além de que o maior par de chifres tinha então acabado de chegar.

Combo divertia-se amiúde, era sabido, com uma ou outra empregada de cabaré, garota serviçal, trabalhadora dos campos, assumindo perante todos os comparsas que o casamento com Agualva não passava de uma farsa – o que aliás pouco parecia importar à patroa ociosa, sempre de viagem ao estrangeiro acompanhando as tendências da moda, as últimas novidades em tratamentos de beleza (embora tivesse péssimo gosto e não se percebesse ao certo para quem queria estar tão cuidada…). Mas agora o caso tinha outros contornos: chegara à cidade uma belíssima indígena que tomara o coração de Combo e o prendera, dir-se-ia que com grilhetas. Pele cor de argila, ondulações de ofídio, Caxemira vinha trabalhar no maior cabaré de TerraSanta. Era um assombro. O coração de Combo – que nenhuma outra mulher conseguira, até àquele momento, roubar às preocupações com as terras, às plantações, às estações e às colheitas – foi tomado de assalto. Houve monção fora da monção, uma enxurrada apaixonada, impensável: era como se o coração de Combo tivesse despertado de mil anos de torpor enfeitiçado nas mais profundas brumas dum desfiladeiro à beira-mar. Ele convidou com surpreendente rapidez Caxemira para a fazenda, dizia-se que vivia já com ela partilhando leito, chegou a ceder-lhe quotas nos bananais. Apesar disso, a rapariga mostrava apreciar a sua liberdade acima de todas as paixões e decidiu manter o trabalho no cabaré, onde dançava duas ou três noites por semana sob o olhar diligente e orgulhoso de Combo, que a trazia protegida com três guarda-costas encorpados.

Cheirou a esturro a dona Agualva, estes factos feriram-lhe a dignidade lá onde ela a tinha. Pôs-se a magicar vinganças, a destilar venenos com suas comadres confidentes. Surgiu-lhe então a ideia peregrina de ir ao encontro de dona Divina del Mar, a feiticeira maior do reino Combolero: extremamente respeitada entre os nativos, dona Divina pertencia ao restrito grupo dos sem-idade, indivíduos muito antigos nos anos e com o dom da profecia que seguiam uma dieta especial à base de frutos e consultavam pessoas aflitas ou simplesmente curiosas para orientá-las nas suas decisões de vida, além de tratarem todo o género de maleitas de modo eficaz, com emplastros de ervas anãs, unguentos, cactos e lama mineral. Dona Divina del Mar, que eu cheguei a conhecer muito bem, devia o seu nome ao facto de ter a casa virada ao oceano e exibir dons de encantar nas mezinhas por si preparadas, com pedaços de feto pendurados no seu varandim atlântico; robusta de braços, com olhos cerúleos e sombras ametista a nadarem-lhe no rosto, devo conceder que dona Divina impunha certo respeito. A anciã chamou um dia Combo, ignorante de tudo, à sua barraquita de praia: era Outubro, estava abafado e chovia. Ao que me contaram, Jacques Combo vinha contente: cantarolava, dançava celebrando o extraordinário espectáculo de Caxemira, a noite de amor passada; vestido um pouco à pressa, quase parecia flutuar no ar entre o aroma das frutas tropicais, que sufocava nesse dia. Dona Divina del Mar, fingindo-se curiosa, perguntou a Combo qual era o seu maior sonho – este respondeu-lhe assim, com dois gritos eufóricos, julgando que a feiticeira intercederia em seu favor junto das eminências celestes:

– Dona Divina, voar!! Voar!!

Então a minha avó fez-lhe sem dúvida a vontade. Eu regressava da escola e era muito pequena, porém penso agora que a cor esmaecida de Jacques Combo quando me cruzei com ele nos Jardins de São Pedro não deveria ser mais que um resquício do susto inicial: pelo caminho que levava tomou a voar a direcção do cabaré, onde assistiria por certo à actuação de Caxemira com o cair da noite, sempre atento ao espectáculo no interior da sua perfeitíssima bola de cristal, a engenhoca do milénio.

 

O MÚSICO NAUFRAGADO

 

“Eu penso em dó ré mi fá sol lá si, penso em sustenidos, em mínimas e semimínimas, colcheias à tona da água e mais um soluço de desespero.”

 

Foi quando botei um braço fora da água que me apercebi como a embarcação já tinha mergulhado por completo nas ondas salgadas. Espuma e mais espuma a desfazer-se contra o casco, gente nas bordas gritando aflita: tudo isto engolido pela imensidão dos mares. Silenciado em líquido. O meu piano também, aliás a banda toda com instrumentos doirados, reluzentes, que iam caindo directos para o fundo espectral do oceano. Presos nas algas, transformados em bancos de coral.

(penso em sustenidos, uma colcheia flutuante)

Na travessia da Dinamarca para Inglaterra incendiou-se-nos o barco a meio do caminho, foi um fumo asqueroso a sufocar-nos de súbito, uma agonia entre as gentes; o barco subia e descia na vertical, de modo que o estômago era uma pastilha elástica na nossa língua. Houve berros – isso sei.

(penso em fá e uma semimínima passa-me diante dos olhos, a boiar)

Como sou polaco não falo estas línguas: ficaram-me gravadas na memória apenas expressões de horror; uma algaraviada (algaraviada existe, na minha língua?) confusa e amalgamada, indistinta, de dialectos locais, expressões europeias das mais melódicas às sumamente originais. Olhos arregalados, horríveis, em senhoras formosas havia cinco minutos, deturpações nas caras, bocas escancaradas de pavor entre os embarcadiços, sobrancelhas em pânico nos doutores distintos, crianças esfumadas no ar porque se transformaram por completo num grito

(eu vi crianças esfumarem-se no ar)

que os ventos levem com sucesso

em ondas médias e longas

o fio de som do vosso espírito para buscar ajuda junto à costa, crianças

(vi corpos correndo a buscar os salva-vidas sob a tempestade, carnes geladas do frio cortante, um relâmpago abatendo-se sobre o barco)

um pé roxo, outro pé paralisado, recusando andar, o nariz quase a cair-me na boca

(carnes geladas do frio cortante; a frase: agora o que fazer?)

o nariz a cair-me na boca, imagine-se

(era a pergunta geral).

Quem nos acode? E agora? Tantas noites, tantos dias, tantas esperanças vãs… Então é só isto? Por que não são as nossas preces atendidas? Existe alguém que não nos ouve?

(era a ânsia, a dúvida alastrando)

Estará Deus, esse casmurro milenar, zangado connosco – não nos fala? Não nos vê, nas suas cataratas idosas, não enxerga a nossa aflição? Que se passa com a fé, que vai por água abaixo ao mesmo tempo que o mar nos sobe corpos acima?

Foi então que me veio à memória a minha Polónia natal, com os corvos e a urze

(no meio dos corvos e da urze, um coro escolar na infância, dó ré mi sol fá lá sol, os meus colegas cantando com luvas de lã nos dedos fá sol lá sol, a nossa expiração cristais de neve dó ré mi lá)

e as murtas e os prados, estradas enlameadas pela neve, idosos atarracados, o meu avô – um idoso atarracado afogando o corpanzil numa lambreta –, neve, a neve sobre as cercas como cera derretendo nas velas dos postais natalícios, os cães ladrando na amplidão até de noite, os galhos duros que se nos prendiam no cabelo arrepelando-o e faziam parte de copas enormes cobrindo o céu, que por sua vez estavam ligadas ao tronco ancestral e à raiz profunda que as suportavam, um tronco grosso e implacável, autêntico pilar duma árvore-monumento: uma pereira, uma macieira, um pessegueiro, um carvalho antigo com casca de escaravelho, um bosque de choupos deixado pelos alemães na província quando tomaram conta das terras que são nossas, e que para ali ficou a envelhecer com os anos ao nosso lado, o lado certo dos homens a quem a terra pertence (o lado errado é daqueles que vêm e as ocupam, lavram a terra demasiado fundo sem saber o que semear, não conhecem as estações nem as luas nem as nuances dos dias rigorosos, a neve e o gelo e os seus caprichos, e acabam por matar árvores com as charruas aterradoras, espantar corvos, pardais ou falcões que descem da montanha por causa do gasóleo, envenenar pessoas com pesticidas desumanos, e nada colhem ao fim dum ano a não ser cereais moribundos num campo sem fim, palha que não presta, frutos inexistentes, a castanha bichosa; os que não conhecem a diferença entre enxertar num dia ou no seguinte aquela planta especial). Estamos, portanto, do lado certo dos homens a quem a terra pertence. O mar não pertence a ninguém: será um sítio parecido com o Purgatório, sítio nem certo nem errado onde estar. Simplesmente espera-se.

(não nos resta senão esperar que uma gotícula de mi doce na boca e colcheias entrelaçadas a formar uma ilha onde poisemos os pés em terra firme e nos abriguemos, areia no lugar deste líquido gelado a prender-se entre os dedos dos pés)

Desejei que a neve sólida em vez da chuva e o mar gelo onde eram ondas de cinco metros, como na minha Polónia natal: talvez assim os instrumentos à tona e nós patins em vez de bóias – mas que bóias, santo Deus? – que se rebentaram e perderam na maré ou não existiram de todo, nós patinadores velozes e graciosos onde nadar não sabíamos, com um público maravilhado aplaudindo ao fundo, no lugar do rugir ameaçador dos trovões. No convés do navio patinagem artística ou esquiadores precisos e talentosos em vez de náufragos moribundos que acenavam por socorro, os pobres, a quem não os podia socorrer, porque os coitados dos acenos não sabiam nadar e os coitados que sabiam nadar estavam nas águas exaustos, petrificados, e tinham desaprendido de como se cortam as águas com os membros dormentes e os dedos engadanhados e o cérebro gelado e os gestos tolhidos num exício inclassificável. Soltavam, alguns deles, lágrimas que lhes gelavam a face ao chegarem-lhes aos ouvidos os gritos aterrorizados daqueles que não sabiam nadar. Eu era um dos que sabia e tinha esquecido ou desaprendido ou soçobrado, um das lágrimas geladas, portanto. Os das lágrimas geladas agarravam-se ao que podiam para permanecer à tona de água

(uma gaivota, como é? difícil de imitar… posso construir uma melodia para a gaivota com lá, si bemol; como eram os pássaros da minha Polónia natal? ainda me conseguirei lembrar depois disto?)

o meu piano afundou-se no escuro e era uma pessoa também, à sua maneira. Não sei se alguém compreenderá como me custa não ter podido fazer um luto pesado por ele, nem despedir-me decentemente do meu querido companheiro. Não me importa que o considerem absurdo. Não me interessa, não quero saber.

Agarrámo-nos aos pedaços de madeira, a bidões – nós, os das lágrimas congeladas –, aos remos dos botes, às bóias vazias, aos malões abertos, às esperanças frustradas, ao oco dentro de nós num mar aberto, agarrámo-nos aos movimentos que não conseguíamos e ao ar pelo qual ansiávamos, perdemo-nos de nós e não voltámos a reaparecer. Não diante uns dos outros, não nunca da mesma maneira. O tempo fez questão de esquecer-nos uns dos outros.

Na mistura polifónica de vozes, no concerto do terror, compreendi a natureza das inquietudes universais; não alcancei a semântica, captei as emoções por trás dos prantos aflitos: a dor da injustiça, a crueldade do mundo, o confronto cara a cara com o fim, a morte ao nosso lado, tocando-nos o ombro como uma irmã confidente. Beijando-nos o rosto. A esperança na salvação que não chega, os pedidos de clemência derradeiros, as vozes dos deuses ou dos mitos ou dos monstros dos mares sem fim engolindo finalmente estas outras, humanas. Um rosto belo de mulher jovem que o sal e o vento consomem até aos tendões, para depois o abandonarem, implacáveis, arroxeado sob as nuvens densas; garotos descobrindo-se desprotegidos da chuva e do afogamento mesmo fincando com as unhas a franja da saia da mãe, num choro exasperado. A efemeridade, o sofrimento, a ironia, o abandono. Tudo isto eu percebi através da música encerrada nas línguas, nos sons dos vocábulos, da carne do sangue e dos seres em transformação.

(relembro os sons e não entendo o que dizem, absolutamente nada)

Mas sei o que sentem. Compreendi-o também, em definitivo, pelas expressões dos rostos: têm qualquer coisa de irredutível que não me deixa escapar-lhes. Sonho com elas, acordo palpando-as na minha face rígida. São máscaras que a gente põe e tira e põe e tira e não são nunca nós: as imagens do horror como um polvo gigantesco que nos tortura pela cintura, nos aperta e consome. Outros sentimentos humanos seguem um itinerário semelhante: a maldade é também assim, de igual modo a inveja engole e subjuga. O que há a mudar? HUMANIDADE PRECISA-SE: isto é o que há a mudar: disse-o tantas vezes ao meu professor de latim na terra-mãe, anos antes de todo este grande desastre ter ocorrido. E agora a sensação de futilidade dessas conversas.

(penso em bemol, si bemol… isto existirá? já não sei)

O meu piano, uma tão grande parte de mim, afunda-se pesadamente na escuridão turva das águas, o meu piano preto

(qual a marca? não me lembro, já não sei)

como um cadáver aterrando no fundo do mar.

Ainda me lembro. Estou vestido de gala para a sessão da noite que se aproxima

(aproximava)

faltava só jantar depressa e depois a gala, tocar uns acordes que sei de cor mas não deixam de surpreender-me, então deu-se isto: tive de desapertar o laço, peço desculpa… A informalidade da ocasião – do naufrágio – assim o exigiu.

(sonhei durante muito tempo com a minha terra natal, as aves migratórias fugindo do inverno, os seus sons de despedida ré mi dó; passado o muito tempo o Verão tornou a aparecer)

Acordei numa praia da Inglaterra

(levado pela maré, suponho, mas prefiro acreditar que um cardume de sereias polacas me transportou pacientemente a bom porto)

acordei numa praia da Inglaterra – dizia eu – enregelado, de mão frias e pés como toros de madeira na sensibilidade, segundo me pareceu. Nem sinais do Verão.

 

O ÍNDIO DE VILCABAMBA

 

Cerro Victoria é o meu tecto do mundo, onde se limpa o ouro de impurezas nefastas: as que vêm  por chão e antes vieram de barco cavalgando sobre ondas, marés – loucura do homem cor de nuvem. Sou irmão do vento e das tempestades, unjo a cara cor de bronze com tintas de terra, de sangue. Sou esquivo e fino como o feno nas cordilheiras, assentei uma a uma com as próprias mãos as lajes dos caminhos na crina das encostas. Sou eu que vendo os olhos ao cavalo, antes da subida, para o carregar de mantimentos sem que se assuste. Tenho penas de águia trepadeira na cabeça, fios de couro no fato, colares, instrumentos. Eu sou o som da minha flauta que voa, a dança milenar em torno da fogueira, sou as sementes verdes que masco num sorriso, sentado de pernas cruzadas no chão empedrado a negro, desde sempre. Sou suor escorrendo dos olhos. A água é minha irmã, o sol uma conquista, uma dádiva plena. Corto as canas para a flauta e nisto a planta geme, tem alma no oco: o que me surpreende. Disse uma vez ao homem cor de prata: os canaviais têm alma no oco – por isso não corto canas, ficam almas à solta a vaguear na aldeia; o moço traduziu do quéchua para outra música (a do homem cor de barro branco) e ele não me acreditou. Eu tenho uma filha pequenina que se ri como os pássaros gorjeiam e uma mulher jovem em cuja pele os insectos julgam sentir o odor a flores silvestres, enganando-se nela à procura de alimento. Há chuva nos olhos da minha mulher nos dias mais bonitos: são dum cinza cortina de aguaceiro, mistério de névoa contra o verde gritante das encostas.

O homem cor de latão tinha vindo de Cuzco com outros homens, escarpas acima, que ostentavam relâmpagos na cara ou um só olho de falcão enorme, espiando tudo, como um grande buraco no rosto – disseram-me que lhes chamavam foto-grafos na música deles. Ao chegar a Huancacalle, o homem ofereceu-me um presente em troca dos meus serviços de vaqueiro até ao topo da grande montanha; o presente ficou com a minha esposa olhos-de-chuva, riso agreste, corpo meu, e estava dentro dum cilindro. Enquanto aparelhava os animais, recomendei expressamente que não deixassem a minha macaquinha-curiosa de riso trinado, a pequenita, tocar no presente do homem branco: “quando eu chegar se verá”. Tinha ele dito que era uma raridade aquele presente, comida muito valiosa. Eu queria guardá-lo com todo o cuidado, talvez mostrá-lo de forma pública na maior festa da aldeia – haviam de achar-me um homem importante: os outros homens tirariam o chapéu à minha passagem e as raparigas fugiriam entre risinhos.

O homem cor de lua era o mais importante de entre aqueles que haviam partido de Cuzco; tinha uma barriga muito grande: quando lho faziam notar dizia com um sorriso que havia sido consequência duma “barrigada de pêssegos” – isso mesmo nos dizia o rapaz que falava a língua do homem e usava uma bolsa de couro igual àquela que a minha mulher traz sempre ao ombro. Caminhámos quatro dias na direcção da grande montanha e outros quatro despendemos para o regresso. Atravessámos um nevoeiro cerrado nas subidas verticais longe do mar, perto dos deuses. Custou muito a respirar ao homem de latão, amparou-se aos nossos ombros no trilho derradeiro, assim como num terço do caminho; explicou-nos depois que estava habituado a sentar-se sobre motores, mesmo para voar. Voar? Sim, o homem barrigudo diz que voa: suspeito contudo que não terá a graça do falcão, a destreza de outros bichos aéreos nossos conhecidos. Nem penas tem para ostentar, a beleza não o viu: tinha posto uma venda colorida como aquela que eu coloquei no cavalo para aparelhá-lo quando o homem da barriga passou, a dona beleza.

Uma noite depois do jantar untaram-me de gordura as mãos, não sei porquê: fiz questão de tirá-la imediatamente. A comida que os homens de latão traziam de Cuzco pouco prestava, as melhores refeições éramos nós que as fazíamos com provisões arranjadas ao relento e guisados próprios ou improvisados. À medida que alcançávamos o cume andávamos cada vez mais devagar, na certeza de encontrar lá no cimo como que um pássaro raro: encontrámos bruma e um frio de rachar, como de costume. Mas os homens estrangeiros ficaram contentes; o meu companheiro mais chegado tocou flauta com o objectivo de entreter-nos e afugentar o frio da nossa pele. Não houve vivas quando alcançámos o cume, somente um desejo sôfrego por grandes tragos, goles monumentais de bebidas que nos aquecessem o ventre – isto à mistura com a sensação de termos, nalgum ponto por mais recôndito, domado a nossos pés a natureza. E os líquidos fermentados a queimarem-nos as tripas por dentro (imaginámos que a “barriga de pêssegos” do homem cor de caliça sobreviveria melhor, não sei porquê, àquele jejum derrubado com o álcool). Os relâmpagos aumentaram no rosto dos homens olho-de-falcão, vitoriosos.

Perdemos dois bois e um cavalo das cordilheiras na subida até Cerro Victoria; por outro lado, ao descermos, a tendência dos estrangeiros para as quedas encurtou distâncias. O rapaz que falava por eles e por nós para uns e outros (pássaro cantor) aproveitou o vagar aliviado com que descíamos da glória – como quem desce um degrau – para ir pousando com discrição aqui e ali, agachado a colher ervas úteis para o interior da bolsa de couro igual à da minha mulher. Alheio aos demais, deixou que comunicássemos por gestos intenções e sentimentos; mais tarde dançou nos caminhos a poeira que nos cobria a cara, as pinturas: ficámos todos da mesma cor por fora. Na sequência disso, foi sujeito a repreensões por parte de vários companheiros, o nosso transformador de músicas (“agora vou dizer isso na música deles”, costumava ele explicar nas traduções…).

Ao chegarmos à aldeia reconheci de imediato um riso trinado: era a minha pequenita a brincar no pátio junto às casas; divertia-se à brava com uns bichitos pequenos, uns paus e uma casca de fruta. A minha mulher seguira todas as recomendações no sentido de proteger o mais possível o presente do homem-lua, salvaguardá-lo de quem quer que fosse que tentasse botar-lhe as mãos: estava protegido por uma espécie de esteira no canto mais abrigado da casa. Os homens cor de nuvem despediram-se de nós com uma palmadinha condescendente nas costas, em seguida continuaram a chover como gotículas encosta abaixo, na direcção de Cuzco. Como a ocasião era solene, preparámos entre nós uma grande festa para essa noite: juncámos o chão e acendemos enormes fogueiras. A minha pequenita entreteve-me até ao jantar, curiosa como um animal recém-nascido; pela hora da refeição sentei-me ao lado da minha mulher junto à fogueira – porém o calor deste ser encantatório era-me ainda mais aprazível que o dos vegetais em combustão. Guardei para o final do jantar uma grande revelação que fez aumentar de imediato o meu estatuto junto dos outros habitantes da aldeia, olhando-me todos eles com modos sérios e respeitosos: a fruta-prenda preciosa que o homem cor de luar me deixara em sinal de reconhecimento pelos serviços prestados. Informei-os de que guardara o cilindro com todo o cuidado até este dia: só eu comeria o manjar porque a mim me houvera sido dado o presente, no entanto eles teriam (tal como a minha família) a honra de assistir à deglutição, e para a aldeia toda isso seria certamente uma benção. Foi quando eu me envenenei num dia de tempestade: a fruta, com tanto desvelo, passara o prazo de validade para ser comida (e como eu desconhecia o sabor, não lho estranhei…); chamaram o curandeiro mais experiente da aldeia, contudo não puderam evitar que o meu estômago rebentasse em vómitos esverdeados e as tripas me definhassem aos poucos em gemidos condoídos. Morri nessa mesma noite, encharcado em suor, com a barriga a estoirar, a minha doce mulher ajoelhada a meu lado. Não guardo, todavia, remorsos ou ressentimento: daqui de cima, donde vos falo, vou planando voos de falcão; esta agudez no olhar permite-me guardar, obstinado, as brincadeiras da pequenita e assegurar-me de que nunca na vida ela comerá pêssegos. Por isso estou bem.

 

YAKUTUBA

(A Mulher-Serpente Das Duas Vozes) 

Era uma rosa-chá no cimo dum monte, uma casa amarela ao lado da rosa que não era uma casa, antes um castelo. Pequeno castelo desmaiado nos Alpes, telhado em agulha picando o balão das nuvens. Era uma mulher-sereia brasileira que caiu de páraquedas dum avião; encantava todo o mundo nas suas formas sambadançantes, olhares salsoexóticos, ternuras tangotendentes ou boleroderretidas. Jeito que não enganava de goiabada no ponto. Tinha na sala, como dizer

living?

um sofá insuflável de esferas prateadas muito amigo dos costados, moldável às deformações da nossa coluna. Acontece, porém, que a esta mulher – de nome Yakutuba, “a que não espera” – foi-lhe a sorte madrasta, o destino enganoso.

Yakutuba vivia num castelo mesmo em cima da fronteira entre a Áustria e a Itália, onde se dedicava com firme devoção, argúcia gestora, à organização duma casa onde florescia a prostituição de luxo. Acolhia com alguma regularidade no seu château forasteiros recomendados por austríacos ilustres – depois de massajados pelas meninas sob o champanhe, a chuva de pétalas de boas-vindas, os senhores importantes eram conduzidos aos aposentos de Frau Yakutuba para apresentações rápidas, um pouco informais: se de entre cem havia um que não se mostrava de modo claro deslumbrado com as formas insinuadas pelo corpo da brasileira na banheira redonda e espumosa a partir da qual ela os recebia, esse sujeito era decerto um tímido incorrigível. Semelhava um peixe, assim imersa nos mais cheirosos sais de banho… um peixe magro, ondulante e macio, sensível mas austero (quiçá um agulha?), de tal modo a mulher tropical era implacável no seu jeito de interrogar os homens: interrogações, em Yakutuba, eram como um  relâmpago de trovão no final de cada frase; o discurso desta peixinha vinha assinalado por uma ruga diminuta ao alto do nariz, entre os dois olhos negros e grandes, anunciando tempestade exigente. Finda a fase das apresentações rigorosas, satisfeita a curiosidade anfíbia de Yakutuba, podiam os homens retirar-se, a apaziguar no colo das meninas febres inauditas, numa recôndita orgia de alcovas – e exuberante de esplêndida: com ostras, sedas, pérolas de verdade em requebros de luz doce entre cortinas.

Frau Yakutuba inquiria a respeito de todos os assuntos: queria saber das marés aos que, antes de pisarem firme terra, tinham chegado à Áustria por mar… encantavam-na de aventuras os franceses dos balões, pela forma como descreviam dois castelos no Loire cem vezes maiores que o dela (façanha que a mulher achou improvável, embora não tivesse ousado contestar abertamente aqueles que assim desdenhava entredentes na direcção dos seus colaboradores mais próximos). Enfim, ouvia distraída as vaidades dos ingleses, aborrecida os pretenciosismos alemães – tudo isto sem se erguer da banheira de espuma onde estava instalada soprando bolinhas, massajando os membros submersos, ladeada por duas vetustas árvores-miniatura à tradição bem japonesa, que lhe ornamentavam os flancos como brincos nas asas duma mariposa para ali esquecida. Eram vegetais dobrados pela cintura, as árvores em guarda de Frau Yakutuba, alumiadas de través por meia dúzia de velas esquivas na chama tortuosa de tão frágil; ao fundo erguiam-se duas grandes portadas de cobalto com acesso restrito para um algures misterioso; almofadas, jarrões e tapetes persas dispersavam-se pelo chão negro num caos de sementeira em Abril. O ar era doce como um veneno na presença da senhora do castelo – que, de resto, nunca fora vista com homem nenhum –, o vinho ácido, carmim e inebriante. Havia roseiras de pétalas brancas encostadas às colunas salmão e a voz de lira de Yakutuba era o antídoto ideal contra o silêncio daquele ambiente que envolvia todo o corpo numa dormência irresistível, profunda.

Um sino pousado à ilharga trazia sempre a senhora do castelo, com o objectivo de chamar esta ou aquela menina ou exigir a retirada de qualquer convidado impertinente. Constava até que a Frau era difícil de impressionar, tendo por mais de uma vez mandado que expulsassem algum hóspede menos adequado do seu château, antes ainda que o dito pudesse afogar-se em delícias numa das suites riquíssimas reservadas para o efeito. Era uma casa amarela nos Alpes, com telhado em agulha, ao lado duma rosa-chá. Vinha inquietando os mordomos que na data dessas expulsões desaparecesse pela certa um dos cachorros das meninas, assim como lhes despertava horror a aparição duma serpente esguia de pele em espelho e molhada, às malhas ouro e carvão como um leopardo, olhos raiados em verde e um guizo trinindo na ponta do rabo, pela cozinha nesses dias… Interrogava-se o pessoal acerca da estranha relação entre aquele réptil de voz sibilante, diâmetro equivalente ao do antebraço dum homem, no comprimento maior que três passadas do mesmo, e as mudanças de humor da Frau na presença dos convidados menos delicados ou pouco merecedores de cortesia: alterava-se-lhe a voz de tal maneira, à senhora, que era ouvi-la transformada num assobio ensurdecedor; quando a pele começava a esverdear mandava que saíssem todos, trancando as portadas por dentro numa ira urgente e incompreensível. Depois adoecia durante dois dias, exigindo somente a comida através da janelinha de frade em retiro espiritual. Era uma mulher-paradoxo de beleza equatorial, Yakutuba, a senhora do castelo das delícias escondido numa encosta menos vincada dos Alpes austríacos; presidentes conhecia-os ela pelos nomes, aos deputados sabia-lhes as manhas, dos monarcas lhe deram conta das taras pecaminosas suas meninas mais fiéis. Eram contudo os aventureiros, uns ilustres outros nem tanto, quem comovia sem igual o coração gelado de Yakutuba, mariposa imersa na espuma entre dois arbustos japoneses. A ela lhe davam dó os políticos e bocejos os negociantes, os artistas fascinavam-na, ao passo que dos viajantes não queria apartar-se a patroa sem que discorressem  longamente e com todos os pormenores sobre quanto haviam visto mundo fora. Depois, o facto de serem homens vividos embalava-a nas histórias – era o cabo dos trabalhos até que eles pudessem escapar-se pianinho para o convívio das meninas.

A serpente luzidia que assomava na cozinha medieval em dia de expulsão ninguém ousava enfrentar, nem mesmo a velha cozinheira coxa e rastejante, de cabelo armado em  couve-repolho, oxigenado, olhos líquidos a pingarem  pelas lajes a seus pés (pretos, alarmados de bulldog, olhos de cachorro salsicha gigante – não é assim que se dirá correctamente?), um  aperto à altura do peito assinalável (o peito enorme), coxas gigantescas, joelhos – não se sabe como – suportando aquilo tudo num heroísmo digno de medalha da Legião Francesa, do mesmo tipo daquela com se honram os aviadores quando demonstram  um  grau  de insanidade em  plena Guerra considerado suficiente para legitimar a condecoração. Era uma  rosa-chá no cimo dum  monte e ao lado dela um castelo amarelo com telhado em agulha picando o balão das nuvens.

Desapareceu certa tarde o cão da menina Cassandra, após um flibusteiro ter invadido o castelo dizendo vir a convite dum deputado eminente, patranha que a Frau descobriu e liquidou com dois jarrões na cabeça do homem, afinal um jornalista inconveniente. Os guinchos mortais ecoaram  pelos recantos mais escondidos do castelo, pondo toda a gente em  guarda e a postos para expulsar o intruso. Cassandra, como as outras garotas, correu a ajudar os mordomos a arrastar o corpo para o exterior da mansão, deixando o seu fox-terrier querido (prenda dum cliente antigo, alemão da Bavária que por ela se tinha embeiçado) ao deus-dará pelos aposentos acetinados das meninas. O bicho era toda a alegria das moças nos dias feriados do trabalho, cor de caramelo nas ventas e esperto como um gibão, correndo atrás e adiante a apanhar paus monte fora ou a cheirar galinholas que depois se caçavam  para o jantar. Pantonémio era o nome do canídeo, assim baptizado em homenagem ao avô de Cassandra engraxando sapatos lá em São José do Maranhão, um octogenário distinto em fato-macaco ao domingo, sentado frente à igreja natal a mascar pevides de melancia enquanto se preparava para polir todo o santo sapato de quanto diabo pernudo ali entrasse.

Passeava junto aos espelhos, no quarto da prima de Cassandra, Pantonémio quando foi avistado uma última vez: depois de escorraçado o repórter intruso, nem sinal do terrier. Chorou baba e ranho Cassandrinha quando soube da aparição da serpente maldita, barriguda como prenhe, na cozinha logo em seguida: a cozinheira com olhos de cachorro salsicha gigante mandou chamar um dos mordomos, ordenando-lhe que trouxesse consigo uma gadanha e um serrote, para matar a serpente e desfazer de vez o equívoco. As moças de alterne todas se ajuntaram em roda, aterrorizadas, a um canto da cozinha para presenciar a matança. O mordomo mais robusto do castelo toureou a cobra durante uns largos quarenta e cinco minutos arrancando ais surpresos, provocando gritos assustados e suspiros admiradores na assistência – mas ao cabo dos três quartos de hora apanhou o réptil em falso e, com uma gadanhada por trás, ceifou-lhe o pescoço. As meninas impressionadas aplaudiram-lhe o feito, embora o resto do corpo da bicha continuasse a remexer e o seu sangue frio espilrasse como uma cabidela repulsiva pelos azulejos e mosaicos da divisão. O rapaz atirou a cabeça em assobios ensurdecedores à rua, com uma  pazada decidida; conquistada a cobra, faltava desvendar o monte que lhe ia no ventre e era do tamanho dum homem em pé: puxou o mordomo do serrote, fez um traço a eito em giz vermelho do pescoço à cauda (donde retirou um guizo assustador que o réptil trazia enfiado como uma aliança nos cus), assim ao jeito de quem prepara uma cesariana, e vá de cortar aquela pele tigrada e medonha sem a menor hesitação. A bravura do rapaz mais uma vez impressionou as moças, boquiabertas à objectiva crueldade a que assistiam. Como previsto, no interior da barriga da serpente lá bamboleava o pobre Pantoménio, inteiro porém de barbicha e restante pêlo azulados pelos sucos da cobra, mas infelizmente já sem qualquer vida canina dentro. Além dum ossinho com o qual o cão se entretinha na hora do assassinato, naquela posta da serpente estava ainda um espelho da prima de Cassandra, engolido e posto ao alto, do tamanho duma pessoa, que justificava o ventre desmesurado (dir-se-ia alpino com propriedade), bem como uma possível congestão.

Todos esses casos seriam de espantar, não fosse uma ocorrência essencial e última ter vindo desinquietar o castelo e alterar para sempre a vida de quem lá morava, no cimo dum monte pouco amarrotado, ao lado duma rosa-chá. Já as moças tinham desinfectado a esfregona todo o chão da cozinha e o mordomo enterrado bem longe as entranhas da cobra (que começaram a soltar um odor a putrefacção digno dum cadáver) juntamente com o abominável sino, a cozinheira com olhos de cachorro salsicha gigante dirigiu-se ao salão nobre de Frau Yakutuba acompanhada por Cassandra e sua prima para levar-lhe o chá dessa tarde, contar-lhe com exactidão o sucedido e acertar pormenores quanto ao digno enterro de Pantoménio. Cá fora, no corredor, escutava-se a voz de Yakutuba, melodiosa como poucas, cantando na banheira. Contudo, quando as mulheres deram a volta à chave argêntea no trinco e abriram a porta no cuidado que as intimidades da patroa exigia, foi a imagem do puro horror aquilo que viram: Yakutuba tinha a face chupada e cadavérica, a pele verde com escamas derretendo em fumo e espumando na água do banho, e não conseguia soltar uma só palavra, abafada a sua voz em guinchos de terror iguais aos da serpente morta havia pouco.

– Não a interrompam agora. – ordenou a cozinheira manca com sabedoria – O seu espírito está a retirar-se.

Toda ela derreteu na banheira em líquido esmeralda, deixando os bonsais à sua ilharga floridos de ametista como pequenas buganvílias primaveris. A cozinheira ordenou enfim aos rapazes que levassem a banheira e deitassem a sua água não no lago mas no riacho, lavando-a depois com petróleo, e às raparigas que retirassem dali as duas árvores japonesas, enfeitando com elas para todo o sempre a campa de Pantoménio. Como recompensa pelos danos causados, Cassandrinha foi eleita a nova senhora do castelo picando nuvens com a agulha do telhado no cimo dum monte alpino pouco amarrotado, ao lado duma rosa-chá em cuja corola agora poisam deslumbrantes mariposas.

 

A RESPIRAÇÃO

Depois da faculdade eu tive de aprender de novo a pensar porque já não me lembrava como é que era. Ou melhor: tive de aprender outra vez a ser genuíno, espontâneo e congruente com aquilo que sinto. Há sebentas que limpam o sebo à gente, nesse aspecto. Outra virtude que reconquistei foi a capacidade para contar histórias, parece-me – a meu ver essas duas habilidades estão ligadas de forma íntima. Ora aqui vai, assim sendo:

O canto abrupto dos pássaros irrompeu nessa manhã com uma força suprema. Chilreava o avião por cima deles nas altas nuvens, as amoras silvestres pendiam plantadas de banda em ambas as bermas da estrada. Enrouqueceu o farol um vento mais passageiro, iluminaram a escotilha do barco quantas águas tem o delta do rio; T. Dopman vinha andando descontraído pelo caminho de poeira áurea abaixo, suspensórios e tudo. Trazia galochas, uma varinha de salgueiro ao ombro donde pendia um balde nas suas costas. Vazio? Pendulava no ar.

Na curva do caminho um veleiro de certo modo inesperado inchou subitamente a vela de lixívia ao centro do delta escamoso, estilhaço de mil espelhos dispersos. A manhã clara resplandecia, fazia brilhar a grama verde encerada após as chuvadas. Adiante, um campo de beterraba viçoso anunciou boas colheitas após uma escassez forçada de dois anos, pela instabilidade do clima e o frio rigoroso que assolara os campos, com suas camadas de geada transversais caindo do céu, a queimar cada pequena porção de solo cultivado.

É verdade que T. Dopman não se movimentava com a mesma facilidade desde o acidente, a perna do joelho fracturado sempre a mancar como um veterano de guerra que arrastasse um triste troféu de batalha na ressaca dos heroísmos passados. O membro de plástico não lhe permitia fazer o caminho senão no dobro do tempo de antigamente, mascando amoras com as suas bochechas vazias, que às vezes se prendiam nas falhas dos dentes. Juntamente com o coxear penoso, o pêndulo à rectaguarda anunciava-o indubitavelmente: era ver os pescadores acenando ao longe, homens que sabiam que embora ele os visse não corresponderia ao cumprimento de bons-dias. Não por má-criação, casmurrice ou zanga. Era o seu jeito de ser: todos o conheciam nas redondezas e em ocasião alguma lhe assistiram a uma maneira de estar diversa daquela, no centro dum triângulo entre o sisudo, o invisível e o bizarro. Puxava com a mão esquerda um suspensório enquanto mascava os frutos maduros das barreiras, serpenteando na estrada com a lentidão da preguiça e o entusiasmo dum moribundo. Os dedos iam-se-lhe enchendo de nódoas cor de vinho à medida que se aproximava do barracão das minas, um aglomerado de tábuas esconsas pregadas umas às outras e encimadas pelo telhado em chapa de zinco, pertença de Dopman, onde ele costumava passar grande parte dos seus dias.

Um batel cruzou o rio carregando um amontoado de maçarocas de milho com tons casca de pêssego a incharem ao sol, rebentando os grãos na travessia para dentro do casco: aguardava-o deste lado um grupo de mulheres e crianças, descalças na praia de areão, com grandes alguidares em madeira à cabeça, dentro dos quais transportariam o cereal para um terreiro largo e barrento depois da algazarra que se seguiu à chegada da embarcação, que festejaram com gritos, diálogos agitados e correrias pela beira da água.

T. Dopman abriu a porta do barracão com um simples impulso, sentou-se num balde empinado – o seu posto de vigia – e pôs-se a tergiversar os comentários que aquelas canalhices de catraio habitualmente lhe suscitavam com uma melodia assobiada a bom ritmo e feliz, vinda de tempo muito antigo. Iniciou com uma navalha a escultura do dia, escavando e polindo os troncos convenientes, amontoados no balde que trouxera às costas. A varinha de salgueiro não era um hábito seu, mais habitual seria trazer uma enxada ao ombro: encostara-a de pé à parede do barracão, do lado de dentro, agasalhada a um canto do frio da manhã. Enquanto assobiava, saíam-lhe formas redondas e alongadas das unhas sujas pela madeira, dos dedos gretados e espessos com que acariciava caules ou recortava ramos como quem passa as mãos pelos cabelos duma filha. Com ternura.

O barracão velho das minas foi erguido pela primeira vez na época em que os terceiros donos da exploração de volframite ali chegaram, faz pouco mais dum quarto de século, e quiseram dois palmos de terreno protegido onde descansar e cozinhar depois dos trabalhos. Claro que ao fim do dia recolhiam às pensões da cidade, mas aquele era um abrigo oportuno para as bátegas de água, as contas de lucros e gastos mensais, a refeição pouco mais que frugal do meio-dia, e até a satisfação momentânea dalgum desejo mais encarniçado pela mulher esquecida dum empregado-toupeira à deriva nas funduras da mina. Nunca se queixaram quantas de lá saíram, nunca disseram nada aos companheiros todos aqueles que as viram abalar do abrigo modesto dos patrões.

Dopman é filho dum refugiado da IIª Guerra que acabou nas minas a labutar, embora, ao que se conta, tenha deixado em Berlim uma casa de comércio de tecidos com grande sucesso e clientela fixa, e um escritório de consultoria frequentado pelas personalidades mais ilustres da cidade. Constituiu sempre um mistério para as gentes da mina, incluindo os seus colegas de escavações, com quem passava dia após dia debaixo do chão partilhando intimidades, comida, respirações e miséria, em que tipo de afrontas ao regime de Hitler se vira envolvido ou colaborara o pai de Dopman, contudo sabia-se que o papel activo na luta política lhe custara aquele trabalho mais pesado longe da sua terra, apesar de, após a vitória dos aliados, se ter tornado claro que a permanência era já uma estranha opção ou uma fuga forçada, tendo em conta os aliciantes da anterior vida no estrangeiro e a promessa de uma reconstrução solidária, prenhe em igualdade de direitos e oportunidades de negócio de toda a espécie, alimentada pela nova ordem mundial. A família estrangeira adaptou-se sem grandes dificuldades às árduas terras da mina, tão hostis para com os forasteiros na secura do solo quanto na rudeza das gentes, mercê da sua cordialidade desarmante e dos bons-modos que granjearam respeito entre os mais; a má-sorte que os afligiu veio-lhes antes do próprio corpo, pois antes que T. completasse os vinte anos vira já morrer a mãe e uma irmãzinha tísicas, além de dois irmãos varões que se finaram com moléstias contraídas ou herdadas pelo trabalho nos túneis, debaixo de terra, a respirar pó e pedaços de calhau com os ossos húmidos amolecendo até ao tutano, rendidos ao caruncho.

S. Manfried chegou à porta do barracão a chamar por Dopman com estridência. Ele olhou a visita calmamente e de novo se concentrou no pedaço de madeira que tinha entre mãos e ia ganhando contornos que surpreendiam, formas doces, arredondadas, comoventes, como que brotando generosas dos mistérios insondáveis da memória ou da fonte que rega o coração. A mulher vinha correndo encosta acima sem preocupações de carreiros ou cardos no caminho, chegou à porta do barracão e encostou-se na ombreira observando T. numa perspicácia feliz. Era uma trigueirinha miúda de olhos grandes e baços, voz de soprano, com um pequeno dedo a mais na mão esquerda, saindo do mindinho, que sempre ocultava atrás das costas por vergonha ou reverência na presença de pessoas estranhas à família e que não pertencessem, por outro lado, ao círculo das suas amigas favoritas, um grupo de quatro ou cinco moçoilas novas e radiantes que cultivavam o costume de juntar-se pelo final da tarde numa reentrância da margem do rio discutindo rapazes e comparando formas com o mesmo fervor com que outros se iniciam no jogo político, na poesia ou nas artes da guerra.

– Que foi, Sara? Que fogo trazes no rabo para justificar esses gritos? – quis saber Dopman sem desviar a atenção do pequeno tronco para a rapariga, pretendendo  esconder com o tom intratável aquela ternura mal-disfarçada e casmurra que todos quantos convivessem com ele tão bem sabiam destrinçar como marca típica do seu carácter.

A menina Manfried não respondeu de imediato, ficou a mergulhar a vista no objecto que tomava forma diante dela à medida que as mãos de Dopman descascavam camadas de pau como se fosse uma cebola que um cozinheiro preparasse para o refogado; T. esculpia diante dela com a facilidade de quem molda o barro e a astúcia dum lenhador experimentado. Sara não deu nem mais um passo atrás ou adiante, sentia-se imergir num mundo só dela onde a figura na mão de Dopman estabelecia uma relação com a fantasia e o poema, a realidade e a imaginação; nunca vira criar coisa mais bela, tão-pouco a deslumbravam assim as formas discutidas entre moças ao poente, considerações banais a respeito dos atributos físicos dos machos novos nas redondezas. Um espirro fê-la expor a mão defeituosa levando-a ao rosto e de novo acordou T. Dopman do torpor embevecido em que aquela actividade o mergulhava.

– Então, rapariga, vais ficar aí especada? Tanta aflição por causa de quê?

S. Manfried voltou a esconder a mão de seis dedos junto aos rins e no seu rosto uma luz levemente embaraçada principiou a brilhar de mansinho.

– Agora… encostei-me aqui porque já não me lembro. – confessou ela hesitante, falando baixo como as pessoas que vão visitar as igrejas.

– Ora raios! – explodiu Dopman – Já não se pode ter sossego nesta terra, há sempre esta garotada a atazanar!!

Sara estremeceu um pouco com os gritos do velho, casou a mão direita com a esquerda atrás das costas, deu um passo adiante e atreveu-se a declarar, mirando a figura que nascia com a maior das curiosidades:

– Não se zangue comigo, senhor Dopman. – depois tomou fôlego a preparar o desfecho – Desculpe que lhe pergunte, mas o senhor voltou a esculpir?

Depois que terminei a faculdade aprendi a ouvir de novo o suspiro vivo das coisas, a saltar poemas sem catalogá-los, a avivar na íris o tom animal dum quadro robusto. A respiração das cores transcende etiquetas, os sentimentos em nós despertos sobem como um vapor – da cabeça para o coração – que nenhuma rede de caçar borboletas poderá alcançar; há formas que emergem nos nossos dedos para as quais não conseguimos um esconderijo eficaz. Reaprendi a pensar começando pela respiração (assim mesmo, pela respiração…) e as histórias vieram logo em seguida a pedirem para ser contadas, como moléculas de ar que forçassem devagarinho o diafragma.

 

LINGUAGEM ÓPTICA

 

Imagine o senhor uma terra de côncavo e convexo alternados. Os gordos veriam os magros gordos através de lentes convexas, os magros veriam os gordos magros através de lentes côncavas e assim sucessivamente – com a vantagem de ser, por exemplo, muito mais fácil o senhor trocar de óculos do que modificar os seus pensamentos racistas: veriam então os pretos racistas brancos-pretos através das suas lentes e os brancos racistas pretos-brancos no interior das armações. Confuso? Não, senhor, dir-lhe-ei que tanto menos confuso quanto semelhante terra parece que existiu já e ninguém deu por ela… Não sabe o senhor da sua existência, não houve cá notícia dela? Pois bem, tratarei então eu de contar-lhe a história do seu surgimento e declínio, exactamente desde o início.

Terminou o reinado do monarca em exercício nessa terra há não muitos anos, distando esse sítio pouco mais que meio milhar de quilómetros daqui. Imagine lá o senhor um montão de terra empoleirado nas onduras do mar, assim tão grande em inclinação que ultrapassasse sem dúvida as nuvens o planalto no seu topo e não chovesse nunca lá nas alturas por causa de ficar o cimo do monte situado umas boas três Torre Eifféis acima das nebulosas goteiras mais altas, encarrapitado sobre águias e estorninhos ou a defeso de geadas e pardais, tanto faz, que para o caso é o mesmo se a eterna montanha não tinha, por não podê-lo, neve no topo ou estava gelada e nua a descoberto dos meteoritos, o que é certo é que avistava lá do cimo, altaneira, toda a terra e arredores ou periferias se assim houveram. Este é o reino, portanto, o da montanha eterna onde a lua pousa, este o local onde foi feita – há não muitos anos, creia-me de novo o senhor… – a experiência ou o ensaio de utopia social com o auxílio das leis da óptica e dos fabricantes de lentes, astutos como sempre se revelam estes nas ocasiões potencialmente mais lucrativas que se alevantam entre os humanos seus semelhantes.

Sucedeu haver reinado nesse reino eterno, tão elevado quanto elegante, um rei ainda jovem e bastante distinto dos seus antecessores, porquanto a curiosidade lhe minava as tripas e inteligência era coisa que não lhe faltava, ao passo que o deixavam completamente indiferente as ociosidades do salão. Pelo contrário, filosofias e religiões de distantes sítios, ciências, crenças, e até superstições – sobretudo o oculto – deixavam-no, ao jovem rei, perfeitamente abismado, mergulhado num complexo emaranhado ou numa teia-de-aranha de pensamentos fugazes e reflexões alongadas da qual seria difícil escapar-se, ainda que brevemente, nos momentos seguintes ao do estímulo que os havia suscitado. De tal maneira submerso nas suas imbricações, não se espantará decerto o senhor se eu lhe disser que o rei era, naturalmente, um despistado por excelência – tanto aparentava estar sempre ausente que os criados e restantes súbditos faziam questão de repetir por duas ou três vezes qualquer palavra que lhe dirigissem, por pequena que fosse, não se fosse dar-se o caso de não ter o monarca ouvido, assim abstraído e, não raras vezes, de modo excessivo nas suas elucubrações. Esta característica do rei aplicava-se não só ao que lhe entrava ouvidos dentro como também a todos os movimentos que o corpo lhe esboçava (e aqui emprega-se “lhe” com propriedade, visto que bastante inconscientemente ou sem premeditação se movimentava o rei, as mais das vezes movido pela curiosidade, ou seria desta sorte o monarca um lacaio do seu próprio, ainda esparsamente imberbe e desconforme esqueleto).

Como se as carnes lhe pesassem após um dia afadigado, decidiu o rei distrair certa vez o espírito pela galeria principal, tanto aspirando os ares quentes da tarde madura quanto repousando a vista nas telas raras e relíquias consortes que adornavam o átrio maior, o qual tinha a forma duma sala ampla em octógono e cúpula transparente, com as esquinas da arquitectónica geometria marcadas por pilares cilíndricos em mármore esverdeado e maciço, impecavelmente polido, além de paredes num amarelo suave com toques doirados amenizando o espaço. De repente, os olhos reais – verdes da cor exacta dos pilares de mármore, um esmeralda profundo e sem sentido – pousaram, na ala onde era exposta a porcelana (um corredor mais estreito e atapetado a vermelho à esquerda da galeria octogonal), numa jarra que era por certo aquisição nova, duma beleza extrema e simplicidade revoltante, coando o que restava da luz da tarde por uma só fiada de vidrilhos quadrados embutidos a toda a volta na porcelana azulada com uma cor doce, os vidrilhos minúsculos na sua tonalidade malva dir-se-iam por seu turno espantados com o espanto nos olhos do rei, porventura apanhados de surpresa como uma mulher modesta cortejada sem prevê-lo e, por isso, sentindo lisonja (mesmo que desinteressada do pretendente). A jarra modesta, sobressaindo-lhe nessa frugalidade a beleza entre todas as outras, douradas ou bordadas a fio de prata, da dinastia Ming ou esculpidas em terracota, chamou pela novidade e singeleza a atenção do jovem rei, que se aproximou da banqueta onde ela estava exposta com o intuito de a examinar melhor. Puxou do óculo reservado para o efeito que sempre trazia consigo, quando visitava a galeria, num bolso posterior da vestimenta, um pouco abaixo dos rins, e pôs-se a observar de perto os vidrilhos na sua transparência rosada: surpreendeu-se encandeado pelos reflexos solares naqueles pedacinhos de material tão minúsculos, que à vista desarmada e de longe tinham parecido perfeitamente inofensivos. Se era verdade que se tratava duma peça recente, então teria certamente na base uma etiqueta própria usada pelos curadores do museu para identificar as novas aquisições enquanto a placa frontal à banqueta, com todos os pormenores e explicações indispensáveis ao curioso visitante – e esta parte da galeria era somente aberta à família real ou a convidados ilustres em situações excepcionais – não era impressa na oficina de artes aplicadas do palácio, com um selo da monarquia a cada canto, o que deveria demorar mais ou menos uma semana. Então sim, os mínimos detalhes no que às origens, usos e percursos da peça dizia respeito tronar-se-iam públicos e patentes, além de fantasticamente adornados. Sem conseguir conter o seu entusiasmo pela nova descoberta, o rei deixou, pois claro, o corpo e o espírito actuarem livremente, com rédea solta, a seu bel-prazer, e pegou na peça pelo delicado gargalo para examinar a etiqueta no fundo: ainda mais espantado e de mau-humor constatou a ausência de qualquer indicação, que atribuiu acto continuo a uma negligência incompetente dos curadores, desrespeito também para com a satisfação da natural curiosidade presente nos espíritos da família real. Cansado e vendo o seu desejo de saber frustrado, não conseguiu impedir que uma chispa de ira lhe inflamasse o rosto, a qual desceu depois às veias e aos tendões do pescoço, ao tronco seguindo o percurso da coluna vertebral e derramou, por fim, nos membros um marejar trémulo que desembocou nos seus dedos, fazendo tremer a bela jarra que segurava pelo gargalo. Virou-se o rei para ambos os lados a querer descarregar nalgum funcionário presente e presumivelmente responsável pela falta a ira sentida, desviando-a assim de maiores consequências junto do objecto precioso, mas foi justamente ao virar a cabeça à direita – depois de o ter feito à esquerda sem nenhum resultado – que o rei deixou escorregar entre o polegar e o indicador tensos a estreita circunferência que dava forma ao gargalo, e ao escorregar das mãos do rei a jarra repicou a aresta da base no chão polido, tendo caído fora do tapete sanguíneo, e no instante seguinte deu um salto de cinquenta centímetros em altura e para diante e, não conseguindo ainda assim o rei sustê-la com prontidão (embora o tivesse intentado agachando-se), bateu de lado e com o borco na laje seguinte, escaqueirou-se de vez em mil pedaços num registo sonoro bem agudo. Desolado, o rei ficou um minuto sem reacção, depois os belos olhos esmeralda entristeceram-se-lhe à medida que ele se agachava para apanhar os pedaços, nada restando já naquele corredor da luz alegre e feérica do dia passado. Quando virou um dos pedaços aguçados resultantes da quebra, observou o jovem rei que a antiga jarra tinha um interior peculiar, senhores, aliás como ele nunca houvera visto: uma demão em escarlate e pequeninas imagens de marfim embutidas representando estranhos animais, meio homens meio bichos. Quando neste delicado exame se encontrava, dardejando já mil interrogações, uma voz expressiva e sólida, vinda do fundo do corredor, interrompeu-o:

– Está alguém a querer falar consigo, senhor.

O rei ergueu-se meio estremunhado com o pedaço de jarra na mão, emergindo a custo das suas pesquisas arqueológicas:

– Hã? – balbuciou curioso, com um tom de voz ainda ausente no pesar – Quem está aí? És tu, Dórdio?

Dórdio era um dos curadores do museu real, franco nas qualidades e íntimo do rei porque crescera com ele. Não se tratava de Dórdio.

– Sou eu, Alteza, não me reconheceis?

– Ah, Euclípedes – Euclípedes era um conselheiro do rei especializado em música e extremamente silencioso no andar –, ouve cá, quem fez este desatino?

– Perdoe Alteza: mas vossa excelência, ao que parece… – disse Euclípedes um tudo-nada embaraçado, julgando simplesmente tratar-se duma distracção trivial no jovem monarca.

– Homem, não me referia aos estilhaços… isso está claro, por infortúnio dos deuses, que fui eu. Referia-me à ausência da etiqueta por baixo da jarra, essa deveria cá estar.

– Deveras, senhor? – aproximou-se Euclípedes, debruçando-se sobre os pedaços partidos e começando a sentir-se espicaçado pela curiosidade.

– Deveras. Mas anda, diz-me quem quer falar comigo a uma hora destas! – pediu o rei impaciente, analisando ainda desconsolado, dum lado e do outro, um pedaço de porcelana.

– Não é isso, senhor. Diz o povo que jarra partida é sinal de estar alguém a querer falar com quem a partiu… – sorriu Euclípedes, indulgente para com a juventude do governante.

– A sério? – entusiasmou-se o rei meio a zombar – E quem pensas tu que poderá ser?

– Quem saberá, Alteza, quem saberá… Vossa Alteza ainda é jovem, permanece forte e já ganhou em charme: quem sabe se uma bela pretendente não anseia em segredo por vós?

Estas palavras elogiosas fizeram corar o rosto do rei, que logo se aproveitou delas para cambiar a natureza do assunto:

– Seria necessário que, além de não ter eu esposa, o meu nariz diminuísse em tamanho de forma considerável… Sabes, Euclípedes, aqui neste pedacinho de jarra até nem estou nada mal… – constatou o rei ao usar a porcelana como espelho de mão.

Aproximou-se dele o conselheiro, discretíssimo, para examinar a imagem produzida em reflexo e assentiu com um meneio de cabeça que, pois sim senhor, estava sua Alteza muito elegante tanto nasalmente como no geral, no reverso vidrado daquele bocado que não era a direito mas côncavo em geografia e de rebordo – porque partido –, está claro, desigual.

Dando subitamente dois pulos seguidos à mesma altura, gritou o rei sobressaltando o conselheiro:

– Já sei, Euclípedes! Tive uma ideia que vai por certo resolver os principais problemas, desavenças ou conflitos deste reino!! Uma ideia genial, Euclípedes! Seria Deus quem me estava a querer falar? – e tendo dito isto beijou na testa o conselheiro com uma naturalidade e rapidez desarmantes – Eureka! Fosse ou não fosse, quem agora quer reunir todos os conselheiros para comunicar-lhes o decidido sou eu!!

– «Reunir os conselheiros para comunicar-lhes o decidido»… Não detecta Vossa Alteza nessa afirmação alguma incongruência? – retorquiu com sensatez e sinceridade Euclípedes.

– Incongruência é o meu nome do meio, mas rei ainda é o meu título… Despacha-te a convocá-los, anda! – ordenou o monarca sem ceder a quaisquer pressões.

O ar era um pouco rarefeito na encosta atrás do castelo, sempre a pique até ao cimo daquele monte perfeito que era o reino, aterrado no topo como uma pista de aviação. À altura do palácio ainda havia nuvens, embora não muitas: eram farripas contra o chão como os cabelos dum homem calvo e enleavam-se nos joelhos das pessoas enquanto elas caminhavam, porque andavam (ou voavam) muito cá por baixo. Se uma pessoa não tinha cuidado, as nuvens perseguiam-na, pelo menos, até entrar em casa: uma questão de electricidade estática. Tinham assim, os jardins do palácio, um ambiente peculiar, na medida em que os cedros, ciprestes, rosas e figueiras tiravam a cabeça de fora por entre aglomerações de nuvens débeis que se assemelhavam a nevoeiro. Não me acredita o senhor? Pois só visto e sentido, que assim mesmo é que se está no mundo e se conhecem as coisas! Andava o rei vagueando através deste jardim sui generis na manhã do dia seguinte quando um criado veio chamá-lo de modo a que se apresentasse na reunião de conselheiros, que aguardavam já – mesmo assim, com carácter prévio a qualquer discussão, e de certo modo resignados – pelo seu misterioso comunicado final.

Anunciou o rei:

– Meus senhores, tenho uma importante decisão a comunicar-lhes, a qual afectará por certo a vida neste reino de agora em diante.

Um audível zunzum percorreu a sala, coro de especulações a respeito das intenções do rei – um coro temeroso em relação às mudanças a anunciar.

– Não é necessário temerem porque não são más as notícias. – sossegou-os o jovem – Antes pelo contrário, creio ter descoberto a solução para grande parte dos conflitos imanentes neste reino!

O espanto foi a princípio geral, mas depois uma expectativa descrente tomou conta da audiência, enquanto o rei guardava deliberadamente um minuto de silêncio – segundo ele, «em memória dum passado atroz e conflituoso que jamais se repetirá». Euclípedes inclinou-se respeitoso e segredou-lhe ao ouvido com toda a delicadeza:

– Se sua Alteza me permite: pois, se é passado…

– Não é isso, Euclípedes! – irritou-se ligeiramente o rei – Já vais ver!!

O monarca ergueu-se do trono; em pé, cobiçou o jardim ensolarado e quieto através das grandes vidraças do salão, encarou finalmente o círculo de conselheiros ansiosos e rabugentos, cedo despertos naquele dia, que ansiavam pelas novas propaladas:

– Meus senhores, a partir deste dia ordeno eu – e ai de quem neste reino me desobedecer – que sejam fabricadas lentes correctivas em massa para todos os que aqui padeçam de problemas de comunicação, sociabilidade e raciocínio (vulgo preconceitos) em relação a algum grupo em particular: lentes correctivas que transformem os pretos em brancos na perspectiva dos racistas brancos e os brancos em pretos segundo a visão dos racistas pretos, os gordos em magros para todos os magros intolerantes ou estetas radicais, os magros em gordos para todos os obesos ressentidos ou invejosos, e assim por diante para todos aqueles que tiverem problemas relacionados com a aparência de alguns ou muitos dos seus semelhantes, que desemboquem em conflitos incontornáveis e atitudes menos próprias ou discriminatórias, ofensivas da dignidade dos segundos. Sugere-se igualmente que os machistas usem lentes masculinizantes e as feministas óculos feminilizantes, pois é sabido que normalmente nesses grupos entre iguais não há disparos, cada qual se considerando melhor e mais importante do que os sujeitos pertencentes ao grupo sexualmente diferente, logo, unidos aos do seu próprio grupo por afinidade de genitália e perfeições derivadas, por mais feia que ela possa ser – a genitália – em cada um desses grupos e não se perceba que qualidades ou talentos possam dela – qualquer delas as duas… – advir ou germinar. Dou igualmente permissão, fique escrito, para que as lentes correctivas destinadas aos machistas possam vir a ser utilizadas por historiadores, artistas, políticos e patrões suspeitosamente tendenciosos ou que caem na falácia de reproduzir nas suas obras as respectivas distorções e preconceitos mentais. Reconheço esta decisão como definitiva, pois considero-a em favor do bem comum e dou, por conseguinte – se vossas excelências ainda me ouvirem no meio desse tartamudear verdadeiramente irritante –, dou por terminada esta sessão solene, em função do poder que ainda detenho enquanto governante supremo deste reino (e do qual, independentemente daquilo que vossas excelências possam agora pensar, considero que faço bom uso). Bem hajam, longa vida a todos!

Esta despedida do rei deixou os conselheiros um pouco surpreendidos: apesar de serem todos mais velhos que o governante (uns o dobro dos anos, outros o triplo), nunca Sua Alteza lhes houvera desejado longa vida assim sorridente, pelo que seria de acreditar que se encontrava de facto muito bem disposto, convicto de ter tomado, quiçá, a resolução mais acertada ou inteligente em todo o seu reinado.

Assim como o rei ordenou nessa altura, assim se fez: fabricaram-se lentes correctivas para todo aquele cujas acções fossem por demais influenciadas pela sua estética particular, prejudicando grupos de terceiros à luz de determinadas características visíveis e, para grande espanto dos conselheiros, os conflitos diminuíram substancialmente em todo o reino durante quatro anos. Ao longo desse tempo, viveu-se no monte do soberano uma paz idílica com a qual não só ninguém sonhara anteriormente como não se atrevera nunca, por consequência, a desbravar terreno no sentido de a tornar possível. Todo o povo se orgulhava em ter por governante supremo um rei sonhador.

E a seguir, o que aconteceu a seguir? – perguntar-me-á vossa excelência. Bom, no seguimento deste paraíso utópico aconteceu a maior tragédia humana que possa o senhor imaginar: sucedeu que o nosso rei se destruiu a si próprio e ao seu querido país sem o querer. Não avisaram os nossos fabricantes de lentes que num prazo de quatro anos os “óculos da paz” (assim foi o nome que oficialmente lhes deram) teriam de ser renovados por se encontrarem fora de prazo – mas menos ainda se precaveram a desenhar com a devida antecedência as listas de espera e a fabricar a tempo os óculos substitutivos futuros, que demoravam em média duas a três semanas a estarem prontos. Foi graças a esta negligência incompreensível que, passados exactamente quatro anos e um mês sobre a declaração do rei anunciando as mudanças sociais futuras em linguagem óptica, todos os óculos e lentes de todos os habitantes do reino, os quais se havia anteriormente provado necessitarem de tais acessórios, caducaram simultaneamente. Vendo as negociatas que haviam feito com pessoas que detestavam, os amigos doutras cores, raças e sexos e o extremo equilíbrio dos seus juízos num passado recente, estes indivíduos revoltaram-se profundamente contra os seus compatriotas e em desfavor do rei que, querendo convencê-los a de novo colocarem as novas lentes, só conseguiu aumentar ainda mais a ira dos seus súbditos, que se sentiam enganados de modo vil. Após manifestações violentas frente ao palácio de Sua Majestade, quiseram eles depor o monarca – e foi então que o rei teve a brilhante ideia de arranjar lentes para que o não vissem a ele, os revoltosos, como quem era. Se antes era duvidoso que os tivesse enganado, desta feita tentava, desesperado por alcançar  novamente a anterior harmonia entre o seu povo e ser outra vez aclamado como o mais justo dos soberanos sobre a terra, ludibriá-los sem qualquer escrúpulo. Mas um infiltrado na corte revelou os planos secretos do rei (houve quem dissesse que fora Euclípedes, antes obrigado a colocar lentes para corrigir o seu ódio aos truões de baixa estatura…) e então toda a insurreição explodiu, tendo o povo ateado fogo ao palácio real nessa mesma noite. O fumo vindo dos aposentos reais subiu monte acima, enrolou as nuvens, invadiu por fim os óculos astronómicos do observatório que ocupava o planalto. Tendo percebido o que se passava com as suas lentes de longo alcance, os astrónomos do reino entraram em pânico mas não tiveram tempo para muito mais – tendo galgado encostas, as chamas treparam também ao topo daquele país-ilhéu, devorando num segundo todas as instalações científicas erguidas no planalto. Restaram cinzas do pobre reino das experiências sociais, cinzas e pedaços de lentes entre os corpos carbonizados – foram tanto estes como aquelas adubo para as murtas que invadiram e, de momento, florescem nesse monte só, tão triste e imponente. E agora diga-me lá, senhor, quem será o corajoso a tentar aperfeiçoar de novo essa experiência?

 

A HORA DO LAGARTO

 

O filósofo ergueu as sobrancelhas ao alto, coroando a expressão surpreendida: «Isso será de facto assim como me conta? De certeza que não há enganos?». «Impossível, comendador» inviabilizou o funcionário «Se de outro modo fosse e menos grave, com certeza que eu não estaria aqui». «Isso respeita portanto a que data, ora diga-me lá?» anuiu o filósofo rendido, «Onze de Outubro, excelência, não há dúvida» declarou o funcionário prestimoso, «E o presidente, tem conhecimento do caso ou é-lhe totalmente alheio por enquanto?» quis saber o filósofo, «Por ora, só vossa excelência o comendador tomou conhecimento do sucedido, por nos parecer mais prudente» segredou o funcionário judicial, «Bom, bom… Está correcto» disse o filósofo disfarçando a lisonja. Saiu pela porta principal o funcionário e imediatamente entrou por ali dentro um grande camelo, trazendo-o seguro pela rédea um homem baixo de turbante imaculado. O facalhão de prata à cintura impunha por si só respeito suficiente, não fosse o tradutor encarregar-se imediatamente de transmitir que era usado naquela ocasião sem outro fim em absoluto que o de servir como peça ornamental. «Explicaram-me já ao que vinhas e não posso deixar de manifestar alguma surpresa» disse o filósofo virando-se na direcção do tradutor à medida que falava, «Mas gostaria de ouvir as razões vindas da tua própria boca», e quando terminou o discurso olhou apreensivo o homem do turbante. Este esboçou ao de leve uma vénia quando a tradução findou e começou a falar com rapidez, numa língua bastante elegante: «Ele diz que o senhor comendador deve já saber que não é homem de intrigas ou meias-verdades, que estamos bem informados e, por conseguinte, já o saberá. Ele diz também que acredita que o senhor comendador é um homem bastante parecido com ele neste aspecto particular, e por essa razão decidiu vir ao seu encontro». «Sim, mas deixemo-nos de rodeios» exasperou-se o filósofo, «Senhor comendador, se me permite, os rodeios fazem parte da cultura Iuverdita, sem passar por eles não chegará a lado nenhum…» atreveu-se o tradutor, «Pois que continue, então, mas de modo claro, preferencialmente…» ordenou o filósofo. Com o diálogo dos dois, o homem tinha parado de falar e olhava-os inquisitivo: «O senhor comendador pergunta se não pode oferecer-lhe um chá» traduziu o tradutor especializado em desemaranhar embaraços diplomáticos com perfeição, «Não, obrigado» agradeceu o sultão com um sorriso apolíneo. «Acreditando eu, portanto, no bom carácter, aliás sensível, do senhor comendador» continuou ele sem interrupção «decidi visitar-vos para negociar directamente uma contrapartida pela vida ou o resgate do príncipe», «Arriscando-vos a ser, vós próprio, raptado?» espantou-se o filósofo, «A minha vida pouco me importa, meu caro, e não valerá mais do que um pobre sabre de prata – pouco me importa, dizia, em comparação com a liberdade do meu povo, a quem jurei fidelidade. Ademais, já tenho eleito um sucessor e não acredito que fôsseis tão burros a ponto de tocar-me (isso implicava a morte certa do vosso príncipe), pelo que julgo que, pensando bem, tereis certamente o bom-senso de negociar». O filósofo fitou-o com uma repulsa contida, perguntou «Que quereis então, em troca da vida do nosso herdeiro?», «Todas as terras a leste do rio Sabião na posse dos Iuverditas», «Impossível!» retorquiu o filósofo indignado – o tradutor preparava-se para traduzir exactamente quando o comendador o deteve erguendo ao alto a mão esquerda «Espera, espera… Diz-lhe que ponderaremos o assunto e dentro de dois dias comunicar-lhe-emos uma decisão. Entretanto, ficará aqui alojado. Diz-lhe que pode colocar o animal onde quiser, inclusivé no jardim que mais apreciar», «Não preciso lembrar-lhe» respondeu o sultão «que todas as terras a leste do rio eram nossas por herança e tradição, e que delas tiramos tudo o que comemos como o vosso povo tira dos vossos monarcas toda a orientação de espírito e vontade, pelo que a proposta de troca parece mais que justa…», «Muito bem» acedeu o filósofo meneando levemente a cabeça «ele agora pode retirar-se»: «O senhor pode retirar-se quando o entender e desejar, diz o senhor comendador» traduziu o tradutor, apaziguando o sultão com um sorriso. Este fez uma outra vénia forçada, puxou o camelo bem aparelhado de pano e sela por uma rédea e virou costas com o turbante dançando no ar. Uma vez chegado à porta principal, virou-se para trás olhando o comendador seriamente: «Dou-lhe até depois de amanhã, à hora do lagarto…». Saiu. O filósofo, indiferente, ficou a pensar como raio iria explicar ao presidente do governo que o príncipe, o próprio filho do rei, deixara raptar-se pelos soldados rebeldes dum exército duzentas vezes mais pequeno, enviando ainda por cima como emissário não um oficial digno mas um funcionário judicial predilecto que ninguém na corte percebia (ou queria perceber) por que razão tinha por conselheiro. Absorto nestes pensamentos, emergiu deles com uma questão súbita, dirigida ao tradutor: «Mas o que é, afinal, a hora do lagarto?», «Senhor comendador, a pergunta que me faz é deveras complexa, uma vez que para os Iuverditas cada hora tem o seu animal e, às vezes, serve o mesmo bicho para mais que uma. O lagarto prevalece das sete às oito da manhã e das cinco às seis da tarde, no entanto muita gente defende que o animal das sete é de facto uma salamandra, e assim já poderá ver com maior clareza a que hora se referiu realmente o sultão…». O filósofo cofiou a barba rala e prateada sob um nariz estreito e curvo: «Ora essa… Donde vem semelhante tradição?» quis saber, «Lendas antigas, senhor comendador, e muitas histórias inexistentes…», «Bom, bom…» desembaraçou-se o filósofo «Deixa-me a sós a reflectir, anda…» – o tradutor cumpriu a ordem e afastou-se reverente sem fazer o menor barulho, flutuando sobre o chão polido como o génio da lâmpada. «Também não precisas de flutuar!» irritou-se o filósofo com a sua discrição «Podes perfeitamente pisar o solo, como aliás bem sabes desde o primeiro dia em que me serves! Reconheço que traz isso a vantagem de sair ileso dos tremores-de-terra, mas chateia-me que voem ao meu redor, pois aqui quem tem asas no pensamento sou eu!!»; o tradutor fez uma nova vénia, aterrou dizendo «Sim, senhor comendador» e saiu da sala. A sós, o filósofo pensou, pensou até adormecer no grande cadeirão de veludo.

Dois dias depois, os sete lugares do salão estavam ocupados para um último conselho régio, improvisado ali mesmo nas instalações do comendador filósofo – o regime em vigor naquele país poder-se-ia definir como uma monarquia presidencialista, tipo de regime cujas particularidades e regulamentos resultaria lato aqui expor –, iniciado pela manhã e prolongando-se até depois do almoço. O rei, com a sua enorme barriga e pose de estado convicta, estava sentado ao centro, com três conselheiros de cada lado: tinha um bigode muito bem aparado e encerado em forma de fuso, botas pretas de cano alto, uma casaca com botões doirados formando uma fiada a meio do peito e calças em veludo castanho; a calvície alastrava-lhe como uma epidemia insaciável por três quartos do crânio, sobre o olho azul e a sobrancelha densa e o nariz enorme, rasgado, aberto e fumegante de bovino. Era um homem cauteloso mas, nalguns aspectos, ingénuo, tendo ficado francamente abalado com as más notícias recentes, uma vez que julgava o seu filho, só porque herdeiro varão do trono e educado com cautela, bastante menos estúpido do que ele era: além das palermices que assiduamente cometia, deixava o pai no mais completo desconhecimento dos actos imponderados em que se envolvia, tanto por despeito para com a autoridade paterna e real, quanto por teimosia desmiolada pura e simples. Sentavam-se então à esquerda do rei, respectivamente, o comendador filósofo, um juiz da corte e o tesoureiro da nação – este com uns óculos em circunferência perfeita na ponta do nariz, magríssimo e de boina, aquele com uma densa cabeleira aos caracóis – que era real embora parecesse imitar uma peruca de justiceiro –, dedos esguios e ágeis de águia ou manipulador de marioneta, pele castanha como a casca duma cebola e temperamento traiçoeiro. O filósofo, apesar da sua rudeza, impunha um respeito pronto e reassegurador. À direita do rei estava sentado o presidente na sua pose impecável e disposição cooperante, um primeiro-ministro irritadiço e débil em termos de saúde (sempre anémico ou colérico, em crises de certo modo alternadas) e um músico conceituado em representação das classes artísticas e dos valores culturais – que sempre se esperava que o estado defendesse, não obstante o carácter frustrado da maioria dos intentos deste conselheiro –, de cabeça e barba rapadas, voz melodiosa a sobressair por baixo do catarro do primeiro-ministro e um casaco de malha verde caindo-lhe largo sobre o peito. Em cima da mesa, papéis e processos vários formavam as pétalas duma flor central com corola de acepipes diversos e demarcada por copinhos de água mineral. Discutiram-se à mesa todos os aspectos fundamentais e paralelos, opacos e cristalinos do problema do resgate em questão, pesaram-se alternativas viáveis, contrapropostas possíveis e razões de estado prementes, susceptibilidades diplomáticas, argumentos fulcrais, reivindicações populares e todos estavam de acordo e partilhavam ao menos um ponto de vista, subsidiário do assunto que ali os reunira: o príncipe tinha, de facto, cometido uma das maiores asneiras de sempre. Tão unânime era esta conclusão como a elacção que dela facilmente se retiraria, a saber: a de que se encontravam as decisões do estado quase por completo na mão dos Iuverditas. Pesando todos estes pormenores, mas também a impopularidade que acarretariam medidas tais como a cedência de todos os territórios a leste do rio Sabião aos árabes, cada conselheiro disse com sinceridade o que lhe parecia a respeito daquele problema – o comendador filósofo foi o último a falar, usando nesse momento de argumentos inabaláveis para expor a sua posição. Coube a palavra derradeira ao rei (cujo voto valeria pelo de dois conselheiros) antes de se proceder ao escrutínio final das opiniões à mesa, com aprovação da perspectiva maioritária. E assim, quando às cinco e meia da tarde o sultão entrou, pontual e impaciente, na sala espelhada com o sabre à cintura, o tradutor flutuando atrás de si, puxando o bonito camelo por uma rédea dourada, o conselho régio possuía já uma resposta definitiva para lhe dar a respeito das exigências feitas, a qual – esclarecidos todos os presentes sobre o simbolismo zoológico do padrão horário para os Iuverditas – lhe transmitiram precisamente passada a primeira metade da chamada hora do lagarto.

 

ANA

 

O seu saber sonhador era mais que puro orvalho. Corria em fragrância de neve, leitosa, escorrente e húmida. Era uma rapariga magra, de cabelo liso e castanho roçando-lhe abaixo da omoplata. Cruzava às vezes um membro em p, biqueira no chão, sobre a outra perna estendida – encostada a alguma parede, mãos imensas sobrepostas nas cruzes, dedos esguios de rapina. Ria com uma ironia vivaz e pragmática, como quem rasga papéis. A pele refractava-lhe oiros e canelas no entretanto, simulando o seu perfume uma laranja ácida aberta ao meio ‘inda agora por faca bem aguçada.

Na cidade onde vivia o céu era violeta a maior parte dos dias: por vezes acastanhava, outras azulava para o índigo. Escasseavam copas e ramagens nas árvores todas-tronco da sua terra, isto porque as folhas mais facilmente se convertiam em espinhos impiedosos que em verduras de cetim ondulosas no vento. Como folhas reluzentes, não abundavam outrossim meio-idosos na cidade: pelas ruas corria a criançada descalça, pelejavam mendigos e cães famintos, gente de passagem para melhor vida ou fugindo apenas desta, da secura do pó na erva rala ou dos inchaços nos pés estraçalhados dos cardos. Paredes de oca amarela, enxofrosa, contra o céu purpúreo; varandins cor de poejo onde os velhos repousam da vida: pela manhã ressacam da insónia, a seguir ao almoço embalam o calor, à tardinha vigiam o horizonte com olhos como pontinhos de chiste negro enquanto o céu ametista se converte em azuis profundos e carvão. Crianças e velhos e mulheres pouco ambiciosas guardou a cidade no ventre, expulsando demais habitantes com uma fúria eruptiva e agreste. Há jazigos de cobre nas entranhas da terra, calcário à superfície que indústria alguma aproveita, cansadas as mãos, cansados os homens, vazias as cabeças e quentes do álcool.

Azáleas abandonadas nos quintaizinhos frente às casas, soçobrando no terreno árido sem uma gota de água que amenize a agonia ou adie a murchidão. Gatos anorécticos com os ossos a furar a pele na passada, restos estilhaçados de vasos de flores outrora ostentativos. Uma mulher a fumar cachimbo encostada a um pilar que serve de suporte ao arame da roupa: tem olhos pequeninos e fixos de toupeira, brilho vivaço, muitas pulseiras garridas no pulso esquerdo, uns botins em pele de carneiro bastante usados. Recebe-me com reverência e uma interjeição trocista que disfarça embaraço, suspiros enfadados, uma confusão nos gestos algo nebulosa. Entra em casa e arrepende-se, volta atrás, regressa sem ter cumprido, aparentemente, acto algum imprescindível no momento, desfia uma colecção de movimentos contraditórios junto à lareira, leva as mãos aos brincos de prata (parece que com o objectivo de se certificar que continuam no lugar onde os pusera pela manhã, embora decerto aquecidos pelo fogo na sala), senta-se num pouf de palha entrançada a desfiar as contas dum terço que retirou com brusquidão duma caixa de marfim poisada sobre a pedra do fogão. Ofega de entusiasmo na oração, o olhar converte-se numa espécie de beatitude obsessiva e assustada, ela verte um tinto para dentro dum copo em madeira pintada de branco e bebe de um trago – como que para não sentir o sabor do líquido na garganta. Desenha uma careta logo que termina; tem os membros tensos e enrijecidos, é magra como um gafanhoto, no dorso dir-se-ia que asas de voar países à semelhança dos anjos ou das pragas daquele insecto, acentuando-lhe de peso a corcunda. Oferece confiança a quem se abeire dela e lha ganhe com quanto suor tiver no corpo, vende e dá protecção em troca das riquezas mais insuspeitas. É aquele género de mulher que abdica dos homens com facilidade – e tem o dom de adivinhar aí o passaporte para ser livre –, inclusivé dos prazeres que eles proporcionam por considerar que são fraca paga para as arrelias por eles também causadas, além de se conhecer tão bem (do direito como do avesso) que alcança prazer sozinha de magnitude incomparável àquele que a inabilidade dos varões banalmente permite. Tem as saias leves e uma fundura nas expressões que faz espécie.

– Então você veio por causa dela? – pergunta-me de costas, súbito em pé para mais uma tarefa indecifrável, com um tom de voz ameaçador e cáustico.

– Sim. – aquiesci ruborizado, esfregando as mãos uma na outra apesar de sobreaquecidas.

A mulher impacientou-se, entrou com fúria na cozinha e bateu com a porta. Surpreendi-me a mim próprio não me achando nada surpreso; nem me mexi. Também não desviei o olhar. Esperei que ela voltasse com o envelope nas mãos.

– É isto o que procura? – inquiriu abanando o sobrescrito amarelo na tenaz de duas unhas.

– Não propriamente… – confessei desiludido – Eu quero-a é a ela.

A mulher exalou fumo pelas grandes narinas, deu uma palmada na coxa com a mesma mão com que segurava o envelope e sentou-se a olhar para mim, de repente muito séria:

– Está certo daquilo que diz? – quis saber a fêmea em tom diplomático, abanando as múltiplas pulseiras de tonalidades sortidas.

– Nunca estive tanto. – respondi-lhe desviando o olhar para o chão. Confesso que me senti envergonhado nesse instante, como se aquela mulher mais velha tivesse conseguido pôr a nu as minhas fraquezas mais insondáveis e delicadas – com maior cuidado escondidas – num passe de mágica fenomenal. Ela escondia a ponta dos pés debaixo do tapete e tinha o tique de ir roendo as unhas à medida que escrutinava cada centímetro de pele, o mínimo movimento do interlocutor, num estado de alerta invejável. Sucedia também inclinar a cabeça para trás e inspirar por momentos, como se se alheasse da presença duma segunda pessoa na sala. O seu rosto era grave e doce em simultâneo, duma sobriedade calma que se adquire com os anos e a experiência de vida; por largos minutos permaneceu em silêncio assim agachada no chão com o copo aninhado entre as mãos e as mãos aninhadas no colo generoso, tenso. Nas íris uma densidade tal que era impossível decifrar-lhe o mínimo pensamento, ter um eco das impressões que os outros lhe causassem por detrás daquele espesso nevoeiro que se estendia da pupila para fora e tornava opaco o brilho nos seus olhos.

– Quem foi que lhe disse que eu viria à procura dela? – quis saber, exigindo uma explicação para disfarçar o nervosismo.

– Ninguém me disse, não seria necessário dizer. – foi a resposta que obtive – Mas, explique-me, por que razão insiste tanto? Está mesmo certo do que diz? – perguntou a mulher cada vez mais intrigada, ou assim querendo parecer.

Desta vez fechei eu os olhos escassos segundos por meu turno, como que tomando coragem para a ousadia da explicação, ganhando alento criativo para ser suave na prosa.

– A verdade é que eu amo-a, minha senhora. – depois olhei a mulher nos olhos com determinação. – Essa carta que me mostra enviei-lha eu: é dela e por isso não a quero, contudo muitas outras guardo com grande estima por minha vez, que essa donzela me enviou e que a senhora desconhece: desfiam segredos e intimidades, ternuras das mais divinas, por dinheiro algum do mundo eu consideraria trocá-las. Desta sorte lhe peço que guarde essa carta com desvelo e não a dê a ninguém, nem mesmo a mim que a escrevi, pois é da Ana e uma afeição recíproca pode ela manter pelos meus escritos, a qual a senhora desconheça. – esta afirmação tinha um travo desafiador propositado no tom nobre em que a proferi, o jovem tímido e vacilante que aparecera à porta da mulher agigantara-se num sujeito determinado, corajoso, mordaz, um tipo que sabia realmente o que queria e lutava por isso, ou ao menos fingia-o com convicção.

– Eu quero-a a ela, minha senhora. – a voz tornou-se-me mais grave quando repeti isto, forte e contida mas aguçada como uma embalagem de agulhas, exigente.

– E estás certo de quereres isso? – insinuou outra vez a mulher amarga de expressão.

– Como ninguém mais no mundo. Minha senhora. – insisti.

–   Ela revolveu-se um pouco no pufe, esfregou as ancas impaciente, desviou o olhar do meu para a lareira acesa. Era em faixas laranja e douradas a cor do lume e não se percebia a razão de ser das chamas numa terra tão quente.

– Pois bem – anunciou ela –, a Ana, a tua bem amada e querida Ana, já não está. – sacudiu as pulseiras violentamente – Ou pelo menos não da forma como desejarias.

– Que diz?? – a velha começava a irritar-me com veemência – Ela viajou?? Não, não pode ser: apesar de só mais tarde eu ter lido as cartas que me enviara, expliquei-lhe todas as minhas razões nesse sobrescrito que aí tem e que vejo aberto, logo, decerto ela as soube… Expliquei-lhe além disso os meus sentimentos por ela, no que a Ana me correspondeu. E anunciei que viria, ela jamais partiria sem mim!! Diga-me, minha senhora, pelo amor de Deus, aconteceu alguma desgraça com a minha Ana?? Diga-me!

A velha sorriu, puxou uma espécie de gorro em flanela para a testa:

– Descansa, rapaz, ela não morreu. Está simplesmente… mudada.

– Mudada?! De que raios me fala, senhora? Quer explicar-me?

– Explico, sim. – suspirou a velha – A tua Ana, aquela formosa rapariga cujos contornos bem saberás de cor mesmo sem nunca lhe teres tocado – e não me interessa se tocaste ou não, para o caso…

Quis completar-lhe o retrato:

– Sim, a Ana, cujo saber sonhador era mais que puro orvalho: corria em fragrância de neve, leitosa, escorrente e húmida. Era uma rapariga magra, de cabelo liso e castanho roçando-lhe abaixo da omoplata. Cruzava às vezes um membro em p, biqueira no chão, sobre a outra perna estendida…

– Basta! Não preciso que me descrevas a minha filha. – interrompeu a mulher com brusquidão e como que incomodada, principiando a chorar mas humilhada por mostrar essa fraqueza na minha frente, o que lhe despertava uma ira difícil de conter – Também eu sei de cor a aparência da Ana, embora esse saber derive da convivência, do hábito, e não dum certo costume de espiá-la com cobiça…

– Mas eu travei amizade com a sua filha…

– Talvez. Porém desde cedo te conheci – conheceu toda a gente – inclinações por ela. – disse a contragosto.

Um gato verde-azeitona saltou, assustando-me, para o tapete frente à lareira e começou a desenhar um três em torno das pernas da dona. Foi o gato mais estranho que vi em toda a minha vida: nos olhos ora felino ora humano, o miado substituído por um choro de hiena e bigodes encaracolados, transparentes de navalheira, largos como as unhas dos mortos. A mulher limitou-se a comentar, desculpando-o:

– O Pitágoras foi um bom homem… hoje, enfim, anda nervoso. – suspirou e mudou de assunto – A tua Ana, meu caro, está além naquele cabeço. – disse a velha apontando a gelosia aberta com o queixo.

– Naquele cabeço?? Mas não vi lá figura alguma de mulher à vinda…! – e por instantes o coração encheu-se-me duma esperança furtiva.

A dona do gato bebeu o copo de vinho até ao fim e esmurrou a mesa com uma gargalhada. Começou a fechar e abrir as pernas muito depressa tocando com os joelhos um no outro, num estranho movimento. Desapertei a gola, limpei o suor do pescoço:

– Está calor aqui… Mas onde raio está a Ana?

– Deixou de ser minha para ser tua e agora não é de ninguém. – sorriu complacente – É a vela do moinho que além vês. Foi da sua vontade e assim se cumpriu… Com a ajuda deste terço, rezo todos os dias para que mude de ideias… – depois voltou a arrumar o fio na caixinha.

Dirigi-me à janela e olhei o monte: uma vela enfonada, naquela terra seca e inerte, sem vento, fazia o moinho cantar trovas de amor de cada vez que girava ao sabor dum sopro desconhecido – dir-se-ia que, embalada na própria música, fabricava a mesma vela toda a aragem necessária ao seu deslocamento.

O seu saber sonhador era mais que puro orvalho. Corria em fragrância de neve, leitosa, escorrente e húmida. Era uma rapariga magra, de cabelo liso e castanho roçando-lhe abaixo da omoplata. Cruzava às vezes um membro em p, biqueira no chão, sobre a outra perna estendida – encostada a alguma parede, mãos imensas sobrepostas nas cruzes, dedos esguios de rapina. Ria com uma ironia vivaz e pragmática, como quem rasga papéis. A pele refractava-lhe oiros e canelas no entretanto, simulando o seu perfume uma laranja ácida aberta ao meio ‘inda agora por faca bem aguçada.

Na cidade onde vivia o céu era violeta a maior parte dos dias: por vezes acastanhava, outras azulava para o índigo. Escasseavam copas e ramagens nas árvores todas-tronco da sua terra, isto porque as folhas mais facilmente se convertiam em espinhos impiedosos que em verduras de cetim ondulosas no vento. Como folhas reluzentes, não abundavam outrossim meio-idosos na cidade: pelas ruas corria a criançada descalça, pelejavam mendigos e cães famintos, gente de passagem para melhor vida ou fugindo apenas desta, da secura do pó na erva rala ou dos inchaços nos pés estraçalhados dos cardos. Paredes de oca amarela, enxofrosa, contra o céu purpúreo; varandins cor de poejo onde os velhos repousam da vida: pela manhã ressacam da insónia, a seguir ao almoço embalam o calor, à tardinha vigiam o horizonte com olhos como pontinhos de chiste negro enquanto o céu ametista se converte em azuis profundos e carvão. Crianças e velhos e mulheres pouco ambiciosas guardou a cidade no ventre, expulsando demais habitantes com uma fúria eruptiva e agreste. Há jazigos de cobre nas entranhas da terra, calcário à superfície que indústria alguma aproveita, cansadas as mãos, cansados os homens, vazias as cabeças e quentes do álcool.

Azáleas abandonadas nos quintaizinhos frente às casas, soçobrando no terreno árido sem uma gota de água que amenize a agonia ou adie a murchidão. Gatos anorécticos com os ossos a furar a pele na passada, restos estilhaçados de vasos de flores outrora ostentativos. Uma mulher a fumar cachimbo encostada a um pilar que serve de suporte ao arame da roupa: tem olhos pequeninos e fixos de toupeira, brilho vivaço, muitas pulseiras garridas no pulso esquerdo, uns botins em pele de carneiro bastante usados. Recebe-me com reverência e uma interjeição trocista que disfarça embaraço, suspiros enfadados, uma confusão nos gestos algo nebulosa. Entra em casa e arrepende-se, volta atrás, regressa sem ter cumprido, aparentemente, acto algum imprescindível no momento, desfia uma colecção de movimentos contraditórios junto à lareira, leva as mãos aos brincos de prata (parece que com o objectivo de se certificar que continuam no lugar onde os pusera pela manhã, embora decerto aquecidos pelo fogo na sala), senta-se num pouf de palha entrançada a desfiar as contas dum terço que retirou com brusquidão duma caixa de marfim poisada sobre a pedra do fogão. Ofega de entusiasmo na oração, o olhar converte-se numa espécie de beatitude obsessiva e assustada, ela verte um tinto para dentro dum copo em madeira pintada de branco e bebe de um trago – como que para não sentir o sabor do líquido na garganta. Desenha uma careta logo que termina; tem os membros tensos e enrijecidos, é magra como um gafanhoto, no dorso dir-se-ia que asas de voar países à semelhança dos anjos ou das pragas daquele insecto, acentuando-lhe de peso a corcunda. Oferece confiança a quem se abeire dela e lha ganhe com quanto suor tiver no corpo, vende e dá protecção em troca das riquezas mais insuspeitas. É aquele género de mulher que abdica dos homens com facilidade – e tem o dom de adivinhar aí o passaporte para ser livre –, inclusivé dos prazeres que eles proporcionam por considerar que são fraca paga para as arrelias por eles também causadas, além de se conhecer tão bem (do direito como do avesso) que alcança prazer sozinha de magnitude incomparável àquele que a inabilidade dos varões banalmente permite. Tem as saias leves e uma fundura nas expressões que faz espécie.

– Então você veio por causa dela? – pergunta-me de costas, súbito em pé para mais uma tarefa indecifrável, com um tom de voz ameaçador e cáustico.

– Sim. – aquiesci ruborizado, esfregando as mãos uma na outra apesar de sobreaquecidas.

A mulher impacientou-se, entrou com fúria na cozinha e bateu com a porta. Surpreendi-me a mim próprio não me achando nada surpreso; nem me mexi. Também não desviei o olhar. Esperei que ela voltasse com o envelope nas mãos.

– É isto o que procura? – inquiriu abanando o sobrescrito amarelo na tenaz de duas unhas.

– Não propriamente… – confessei desiludido – Eu quero-a é a ela.

A mulher exalou fumo pelas grandes narinas, deu uma palmada na coxa com a mesma mão com que segurava o envelope e sentou-se a olhar para mim, de repente muito séria:

– Está certo daquilo que diz? – quis saber a fêmea em tom diplomático, abanando as múltiplas pulseiras de tonalidades sortidas.

– Nunca estive tanto. – respondi-lhe desviando o olhar para o chão. Confesso que me senti envergonhado nesse instante, como se aquela mulher mais velha tivesse conseguido pôr a nu as minhas fraquezas mais insondáveis e delicadas – com maior cuidado escondidas – num passe de mágica fenomenal. Ela escondia a ponta dos pés debaixo do tapete e tinha o tique de ir roendo as unhas à medida que escrutinava cada centímetro de pele, o mínimo movimento do interlocutor, num estado de alerta invejável. Sucedia também inclinar a cabeça para trás e inspirar por momentos, como se se alheasse da presença duma segunda pessoa na sala. O seu rosto era grave e doce em simultâneo, duma sobriedade calma que se adquire com os anos e a experiência de vida; por largos minutos permaneceu em silêncio assim agachada no chão com o copo aninhado entre as mãos e as mãos aninhadas no colo generoso, tenso. Nas íris uma densidade tal que era impossível decifrar-lhe o mínimo pensamento, ter um eco das impressões que os outros lhe causassem por detrás daquele espesso nevoeiro que se estendia da pupila para fora e tornava opaco o brilho nos seus olhos.

– Quem foi que lhe disse que eu viria à procura dela? – quis saber, exigindo uma explicação para disfarçar o nervosismo.

– Ninguém me disse, não seria necessário dizer. – foi a resposta que obtive – Mas, explique-me, por que razão insiste tanto? Está mesmo certo do que diz? – perguntou a mulher cada vez mais intrigada, ou assim querendo parecer.

Desta vez fechei eu os olhos escassos segundos por meu turno, como que tomando coragem para a ousadia da explicação, ganhando alento criativo para ser suave na prosa.

– A verdade é que eu amo-a, minha senhora. – depois olhei a mulher nos olhos com determinação. – Essa carta que me mostra enviei-lha eu: é dela e por isso não a quero, contudo muitas outras guardo com grande estima por minha vez, que essa donzela me enviou e que a senhora desconhece: desfiam segredos e intimidades, ternuras das mais divinas, por dinheiro algum do mundo eu consideraria trocá-las. Desta sorte lhe peço que guarde essa carta com desvelo e não a dê a ninguém, nem mesmo a mim que a escrevi, pois é da Ana e uma afeição recíproca pode ela manter pelos meus escritos, a qual a senhora desconheça. – esta afirmação tinha um travo desafiador propositado no tom nobre em que a proferi, o jovem tímido e vacilante que aparecera à porta da mulher agigantara-se num sujeito determinado, corajoso, mordaz, um tipo que sabia realmente o que queria e lutava por isso, ou ao menos fingia-o com convicção.

– Eu quero-a a ela, minha senhora. – a voz tornou-se-me mais grave quando repeti isto, forte e contida mas aguçada como uma embalagem de agulhas, exigente.

– E estás certo de quereres isso? – insinuou outra vez a mulher amarga de expressão.

– Como ninguém mais no mundo. Minha senhora. – insisti.

– Ela revolveu-se um pouco no pufe, esfregou as ancas impaciente, desviou o olhar do meu para a lareira acesa. Era em faixas laranja e douradas a cor do lume e não se percebia a razão de ser das chamas numa terra tão quente.

– Pois bem – anunciou ela –, a Ana, a tua bem amada e querida Ana, já não está. – sacudiu as pulseiras violentamente – Ou pelo menos não da forma como desejarias.

– Que diz?? – a velha começava a irritar-me com veemência – Ela viajou?? Não, não pode ser: apesar de só mais tarde eu ter lido as cartas que me enviara, expliquei-lhe todas as minhas razões nesse sobrescrito que aí tem e que vejo aberto, logo, decerto ela as soube… Expliquei-lhe além disso os meus sentimentos por ela, no que a Ana me correspondeu. E anunciei que viria, ela jamais partiria sem mim!! Diga-me, minha senhora, pelo amor de Deus, aconteceu alguma desgraça com a minha Ana?? Diga-me!

A velha sorriu, puxou uma espécie de gorro em flanela para a testa:

– Descansa, rapaz, ela não morreu. Está simplesmente… mudada.

– Mudada?! De que raios me fala, senhora? Quer explicar-me?

– Explico, sim. – suspirou a velha – A tua Ana, aquela formosa rapariga cujos contornos bem saberás de cor mesmo sem nunca lhe teres tocado – e não me interessa se tocaste ou não, para o caso…

Quis completar-lhe o retrato:

– Sim, a Ana, cujo saber sonhador era mais que puro orvalho: corria em fragrância de neve, leitosa, escorrente e húmida. Era uma rapariga magra, de cabelo liso e castanho roçando-lhe abaixo da omoplata. Cruzava às vezes um membro em p, biqueira no chão, sobre a outra perna estendida…

– Basta! Não preciso que me descrevas a minha filha. – interrompeu a mulher com brusquidão e como que incomodada, principiando a chorar mas humilhada por mostrar essa fraqueza na minha frente, o que lhe despertava uma ira difícil de conter – Também eu sei de cor a aparência da Ana, embora esse saber derive da convivência, do hábito, e não dum certo costume de espiá-la com cobiça…

– Mas eu travei amizade com a sua filha…

– Talvez. Porém desde cedo te conheci – conheceu toda a gente – inclinações por ela. – disse a contragosto.

Um gato verde-azeitona saltou, assustando-me, para o tapete frente à lareira e começou a desenhar um três em torno das pernas da dona. Foi o gato mais estranho que vi em toda a minha vida: nos olhos ora felino ora humano, o miado substituído por um choro de hiena e bigodes encaracolados, transparentes de navalheira, largos como as unhas dos mortos. A mulher limitou-se a comentar, desculpando-o:

– O Pitágoras foi um bom homem… hoje, enfim, anda nervoso. – suspirou e mudou de assunto – A tua Ana, meu caro, está além naquele cabeço. – disse a velha apontando a gelosia aberta com o queixo.

– Naquele cabeço?? Mas não vi lá figura alguma de mulher à vinda…! – e por instantes o coração encheu-se-me duma esperança furtiva.

A dona do gato bebeu o copo de vinho até ao fim e esmurrou a mesa com uma gargalhada. Começou a fechar e abrir as pernas muito depressa tocando com os joelhos um no outro, num estranho movimento. Desapertei a gola, limpei o suor do pescoço:

– Está calor aqui… Mas onde raio está a Ana?

– Deixou de ser minha para ser tua e agora não é de ninguém. – sorriu complacente – É a vela do moinho que além vês. Foi da sua vontade e assim se cumpriu… Com a ajuda deste terço, rezo todos os dias para que mude de ideias… – depois voltou a arrumar o fio na caixinha.

Dirigi-me à janela e olhei o monte: uma vela enfonada, naquela terra seca e inerte, sem vento, fazia o moinho cantar trovas de amor de cada vez que girava ao sabor dum sopro desconhecido – dir-se-ia que, embalada na própria música, fabricava a mesma vela toda a aragem necessária ao seu deslocamento.

 

ALFARROBEIRAS EM FLOR

 

“Alfarrobeiras em flor/ são ternuras dos meus olhos/ para paz do meu amor” – assim cantavam as velhas pela estrada andando sem pressas com pele ao sol intenso ofendida. E dançavam volta e meia, alegres e atabalhoadas, pelo caminho cheio de pó. São figuras sem tempo e sem idade, “encriptadas” – ou com o tempo todo, invertendo a questão; maiúsculas no que é digno mas frágeis na calcificação óssea e magoadas de gengivas na dentição postiça desajustada faz meses. Dançam de sombrinhas abertas, negras da cor ou caruncho, espertas as velhas nos olhares transversais com que vagueiam e planam sobre o horizonte, milhafres ampliados. Aproximam-se do sino da igreja no terreiro, ameaçam-no com danças tribais, de lenços em torno à cabeça simulam quem tivesse papeira e espalhasse, indigente, o bicho do inchaço por todo o lugar. Incharam, por exemplo, no contágio, os maxilares dos cavalos resfolegantes, atados às árvores numa impaciência extrema, com músculos equinos forçando os arreios. Dançam as velhas, despreocupadas dos animais. Ao fundo, atrás delas, adiante, ao seu redor, as alfarrobeiras em flor da cor do papiro ou outonais, escarlate desmaiando para o purpúreo carmim, esvanecido em aguadilha do tom da violeta. À frente delas também, nos seus olhares dispersos, o rigor dum céu primaveril com abrunhos agrestes nascendo em cada chispa de estrela: as estrelas são como cupulins alumiando a escadaria do céu; o canto das velhas é uma cuqueada navegante alcançando na retina ilha virgem a estibordo.

Pensava Almira como o amor é um vento estranho que bloqueia as rotas da marinhagem e afaga, corroendo-o, o rosto das montanhas: há montanhas ao fundo, azuis como uma lua de Inverno, e riachos bárbaros descendo por elas de qualquer maneira. O pai Solimundo Estragão, com uma carrada de feno amontoada na carroça, tirara o chapéu à passagem das velhas e rira de fininho, pelas costas, dos seus passos de dança peculiares. Chegou à beira de Almira, alheada, afagando-lhe os cabelos com um pedaço de hortelã:

– Viste-me aqueles espantalhos? Dá-me vontade de rir de cada vez que caminham para a igreja… são umas autênticas hereges! O senhor cura é que não deve achar lá muita piada, mas se lhe trouxerem o vinho bom dos planaltos, ele baptiza até um cão… – e tendo dito isto pôs-se a mascar uma palha nos beiços com o vagar de quem espera pela morte desejando, ao mesmo tempo, que ela muito tarde.

Como Almira não desse resposta, de olhos à sombra e figura distante, o pai Estragão sacudiu-lhe uma perna com a delicadeza usual no rinoceronte:

– Eh, rapariga! Vê se acordas, que a noite já vai longe! Que se passa contigo, hã?!

– Fez-me um filho, o Edubelo Carpinha… – cuspiu a rapariga sem pensar, denotando na vez de vergonha uma preocupação distante, como se toda a paisagem a absorvesse – Pensamos chamar-lhe Felizmundo Roberto, o “-mundo” é em homenagem ao senhor… Quanto ao resto ainda não sabemos como vamos fazer, se vou viver com ele ou vem ele para aqui e alargamos a casa, por isso não me mace com todas essas ninharias. – proferiu lacónica a rapariga, com um sentido prático que surpreendeu o pai Estragão, na ausência de qualquer sentimento mais à flor da pele.

Solimundo deu um passo atrás, estranhando Almira:

– Muito bem… – resmungou o velho – Vejo que já sabes ser uma mulher e estás muito decidida. É uma novidade que eu realmente não esperava… Mas então, o que é que te preocupa?

A rapariga reflectiu, virou costas, começou a andar de um a outro lado no estrado da varanda com as mãos penduradas nas cruzes.

– Nada me preocupa que possa vir dali. – respondeu finalmente – O Edubelo é o homem que eu amo, o nosso filho será feliz. Foi muito pensado, ao contrário do que possa julgar, simplesmente não lhe comunicámos a nossa decisão.

– Ah, bom… – retorquiu o velho amuado – Vejo assim em quanta consideração me têm: de tal maneira, que nem posso saber que tencionam fazer-me um neto… Um velho trapo, não é verdade? Um pedaço de madeira abandonado no quintal às intempéries que ainda venha, o amaldiçoado, a aguentar para vossa desdita.

– Cale essas queixas na garganta! – gritou a rapariga – E de que outro modo permitiria o senhor que eu e Edubelo Carpinha viéssemos a viver juntos, diga-me? Pois se tem na cabeça a dureza dum calhau e no coração os ouvidos dum mouco, e até agora não podia nem ver-me de mão dada com ele, ou fosse como fosse, sem ameaçar zagaiar o pescoço do pobre rapaz?! Considera que foi justa essa intenção, justos os boatos infundados que espalhou na cidade, em quantas tabernas pôde, a respeito de ele ser traiçoeiro e mulherengo? – Almira Estragão estava indignada e os olhos humedeceram-se-lhe de raiva.

Solimundo levou a vista ao chão, pôs as mãos nos bolsos, tirou um queijo amarelo e começou a cortar bocados com o canivete, que ia comendo assim mesmo sem conduto, sentado num banco velho do alpendre.

– Mas sabendo-o pai do meu neto, o caso é diferente. E futuro genro, claro… Se vai conviver comigo quero-o asseado e limpo, não emporcalhado como era costume vê-lo, estragando essas estradas com os seus tractores monstruosos.

– Muito bem. – retorquiu Almira – Vestir-se-á como o senhor quiser, andará na estrada suponho que a cavalo nos seus bois, pedirá licença para se sentar onde e como você admitir, aliás limpará o cu às folhas que o senhor entender! Se anda menos limpo, é sinal de que trabalha, ao contrário desses desgraçados preguiçosos e beberrões com quem o senhor convive nas tabernas, espalhando boatos infundados a respeito dos bons homens. Esses, aviltantes, que se julgam machos por beberem selhas e mais selhas de vinho, toda a santa tarde e noite derramando-se sobre as mesas dos cafés, e que depois chegam a casa e ainda espancam uma desgraçada qualquer como eles, que se prestara à humilhação de lhes cozinhar o jantar. Diga-me com sinceridade, é isso que pretende para a sua filha, um pantomineiro condenado como o Argentino Rodes?

Ficou um tempo considerável em silêncio, Solimundo Estragão, remoendo as palavras ásperas que ouvira da boca da filha e prendendo-as entre os dentes erodidos de velho como se recheassem os bocados de queijo duro. Assobiou e parou de assobiar, piscou muito os olhos:

– Sabes bem que o Argentino não teve uma vida fácil, a mãe morreu-lhe muito novo, os irmãos idem; apesar disso, considero-o um bom rapaz. Os problemas com a justiça só lhe vêm da necessidade do estômago, nada mais…

Bastava o nome daquele rapaz para provocar em Almira um arrepio de repulsa; ela rebentou em indignação:

– Pelo amor de Deus!! Como é possível que continue a tentar impingir-mo?! O senhor não se toca, pai Estragão… Estou à espera dum filho do Edubelo! E essa bestiúncula não passa fome há anos, desde que foi abençoado pela herança da tia – o que não o tem impedido de praticar quantos crimes lhe vêm à cabeça! Diga-me cá: afinal, que favor deve você a esse marginal?

– Nunca pagaria um favor com uma filha, Almira. – respondeu Solimundo em tom grave, um tom que no entanto não convenceu a rapariga – Mas bom, claro está que agora o outro é meu genro e trazes-me um neto aí dentro… o caso mudou de figura. Contudo ainda não me disseste o que te fazia pensar tanto quando aqui cheguei. – e ficou à espera dum esclarecimento por parte dela.

– Nada, meu pai… – suspirou a rapariga virando-se para os montes, o adro da igreja pouco adiante, onde os cavalos relinchavam a bom tom – Estava a ver a ternura das árvores. – respondeu de forma enigmática. E ao fundo, atrás dela, adiante, ao seu redor, as alfarrobeiras em flor da cor do papiro ou outonais, escarlate desmaiando para o purpúreo carmim, esvanecido em aguadilha do tom da mais pura violeta.

 

O MAIOR ESPECTÁCULO DO MUNDO

 

Um feixe de luz no céu para os lados da Avenida Afonso Costa e aqui, debaixo das copas, buracos monumentais; os homens continuam a trabalhar mesmo à uma e meia da manhã, mesmo de noite as camionetas-betoneiras fazendo uma digestão apressada de betões nas suas grandes barrigas ovais. Apetece-me homenageá-los. Como ratos eles escavam nas fossas dum astro vindouro, o grande prodígio das entranhas da terra. Uma enorme cratera ao centro, vertical, a prumo, muito perfeita. Que pensarão estes homens-ratos, minúsculos junto às maquinetas que fazem mover? O operário é meu irmão na pachorra e no empenho. Como explicá-lo a certa gente? Meu Deus, que focinhudo catolicismo a rebentar pelas costuras!

O maior espectáculo do mundo brilha quando a lua se adensa e Sagitário (a estrela vermelha dos tahitianos) cintila nas suas duas faces. É então que o contrabaixista desce a rodopiar pelo varão do feixe de luz no céu e apresenta um espectáculo fabuloso. Ele dança, marmoreia contra o azul muito vivo. Nada entre as notas. É como se desenvolvesse uma relação de intimidade com o instrumento: fá-lo com um sorriso esmaltado de felicidade rasgado no rosto. Ao agarrar o contrabaixo, prende o pescoço alto duma mulher, esfrega-lhe o nariz no ombro, segreda ao seu ouvido, dedilha em massagem a coluna vertebral; então lembra-me por graça uma foto de Man-Ray onde os rins desnudados da senhora são os contornos em S da caixa de ressonância do aparelho de sons. É uma dança solene, majestática a deles, e ao mesmo tempo duma intimidade profundíssima. O contrabaixista veio vestido a rigor para a ocasião – não esqueceu a falta de pente dum músico que se preze, ou então é a intensidade da entrega física que lhe põe a trunfa a adejar deixando-o transtornado: se eu fosse mulher dum contrabaixista tinha ciúmes do instrumento com toda a certeza – e diverte-me imaginar a senhora contrabaixa aperaltada de pop-chic, à semelhança dos modelitos surpreendentes, de gosto duvidoso, que vemos o povinho desfilar com grande pompa (entrecurtada somente pelos entorses na calçada), por exemplo, Portas de Santo Antão abaixo em noite de Grande Gala dos Globos de Ouro.

Aí, as senhoras (“essas meretrizes que se fingem do jet-set”, como diria a minha tia Albertina…) deslizam com muito cuidado, sacões vários, os saltos agulha de dois metros na calçada à portuguesa; todos se sentem estrelas de Hollywood por dois minutos (o que não significa que gostem, como parece evidente): é possível ver passar desde um cortinado andante dos tempos de Dona Maria Pia até às combinações daltónicas de azul com verde (assusta sempre imaginar que uma pessoa que passou tanto tempo a cuidar da vestimenta não tenha sequer reparado na mais elementar conjugação de cores) ou às senhoras que se assumem alfacinhas de corpo e alma, quer no tom quer na textura dos tecidos, fluorescentes dos pés à cabeça. Outra matéria interessante são os decotes: matéria siliconada, quer-se muito, mesmo MUITO de fora. Há três estratégias que podem ser adoptadas a esse respeito: descer o decote até ao umbigo, aumentar as mamas ou, com bastante maior frequência a avaliar pela amostra, ambas. Outros truques valiosos são conversa de mulheres que não deve ser revelada em local público, muito menos diante dos homens-ratos que se babam, encostados à parede e intimidados, nas costas delas: fica um rasto viscoso na calçada à portuguesa depois da passagem das celebridades. Os homens têm variantes profícuas como os disfarces (?) à gigolô-prostituto e as camisas aos quadradinhos, muito desabotoadas, com gola em bico à moda dos anos setenta. Óculos que tais também fazem boa figura, gravatas berrantes dão concerteza tema de conversa. Tanto homens como mulheres devem exibir um bom bronze de maquineta-solário nos corpos entre o meio-nús e o três-quartos-nús (cinco sextos, na melhor das hipóteses…).

O contrabaixista ensaiou boleros e blues, seduziu tímpanos, arrebatou corações. Declarou-se ao instrumento com toda a emoção, mostrou-se honesto, humilde no dom, fascinado ou arrebatado como uma criança ante a maravilhosa descoberta da vasta paleta de sonoridades e combinações. O mundo todo era dele: o palco a vida contém. Holofotes iluminando o talento, o contrabaixo, o infinito e ainda mais longe, para lá do horizonte, no sítio onde a promessa reside. A promessa futura é o presente do esforço, o exercício passado o natural no presente; como os homens se alimentam diariamente, assim a aptidão deve ser nutrida todos os dias. E ditoso aquele que pela noite dentro se exercitar, como bem-aventurado o outro que de manhã o fizer, pois na verdade ambos terão cumprido, na sua inquietude insatisfeita, o essencial para alcançarem aquele estado de espírito tranquilo à beira do qual desponta o sentimento de realização.

Nas Portas de Santo Antão, no meio de todo aquele aparato, haverá porventura um rapaz com  mau-gosto para gravatas e bom-gosto para óculos de sol, olhos da cor dos líquenes de oliveira oxidados – em tons caramelo –, e um sorriso prateado, muitíssimo límpido. Será um pequeno índio, e o seu rosto uma surpresa diferente no meio da multidão. O que diz é sensato, a sua alegria solene (um dever de estado, uma agradável obrigação), a curiosidade uma pulga inquietante na peúga do índio. É um pequeno artista será ele a seu modo, um construtor do futuro no respeito e na coragem, no desprezo divertido pelos bronzes-maquineta, no assobio distraído das suas reflexões privadas. Tropeçará num vestido a imitar o forro dum sofá decadente e dar-se-á ao trabalho de pedir desculpa pelo sentido estético divergente, o tropeção inadvertido, a mancha invisível da graxa no sapato a macular o guarda-roupa da senhora. Será um cavalheiro antiquíssimo, um bondoso incorrigível, o índio. O pequeno índio pertence a outro mundo que não este, e explora este como quem faz uma expedição à selva: deslumbrado mas à cautela. Nas Portas de Santo Antão um índio, artista doutro modo de ser, numa variante mais longânime.

Scherzo, Allegro, Vivace, Molto Vivace: eis os andamentos nas partituras, que são linhas rectas acneicas, cheias de pontos negros, na cabeça do contabaixista; o homem detém-se entre cada música para trincar um pequeno pedaço do chocolate pousado sobre a cadeira e beber um líquido corado num matiz morango, ofegante e crédulo, como um tenista que recuperasse energias no final de cada jogo do set. Também o contabaixista troca de campo (Andante) sempre que a pauta borbulhenta na mente assim lho exige, ele é o desportista do palco pretendendo enquanto triunfo último o tiebreak das ovações. Não há árbitro no espectáculo senão a disciplina que o músico se impõe, não há juiz mais rigoroso senão um público rendido exigindo mais; o contrabaixista afina o tom e o timbre para deixar passar o altruísmo dum presente intocável, não palpável, mensurável ou estimável em termos quantitativos, inalienável porque corre ele mesmo no ar e no vento e na aragem, no bafo, nos átomos dum sopro que se respira. O feixe de luz índigo estilhaça o céu por dentro, volteia ampliforme no espaço.

Mas que faz um índio, nessa mesma noite, na plateia da Grande Gala? Espalha filantropia, que também lá é necessária. Trouxe um potezinho de barro atado com guitas de palha, de maneira que abre a tampa de cortiça, agachado a um canto com manha dissimulada e rente às cortinas, para sacar lá de dentro, na ponta dos dedos, pozinhos de complacência e berlindes piedosos, espalhando-os pelo fundo do cenário. Daimoso nos modos, traz também folhas de loureiro pisadas com perfeição, que se diz hão-de vir a dar sorte àqueles mal-aventurados a quem ela sempre olvida na hora de distribuir honrarias e gratidão; espalha ainda sobre a cabeça dos convivas umas gotas que trazem no miolo ganas de afecto e modos corteses, depois boceja de cansaço, estatela-se no seu assento estofado, cor de carne, e assiste, sorridente, ao desfile das senhoras vestidas de granadina.

Ainda nessa mesma noite, o maior espectáculo do mundo decorreu sem problemas: enquanto o índio facilitava bondades no mundo – em parte dele, ao menos –, o nosso contrabaixista dançava, dançava contra o azul muito vivo acompanhado a fliscorne no seu sorriso esmaltado: o trompetista descera por um segundo feixe de luz celeste para fazer o dueto. Debaixo do chão, com escadas em branco metálico subindo, à sua frente, pelo grande buraco, os operários olhavam as nuvens para os lados da Avenida Afonso Costa: nem ameaços de chuva, nem ovnis ou étês: apenas dois homens esforçados relacionando-se honestamente com os respectivos instrumentos, suando o trabalho no corpo e um amplo prazer nos sentidos: ambos surpreenderiam divinamente os homens-ratos, pasmados de morte com aquela obra que diante dos olhos lhes nascia.

 

O PASSARÃO INVISÍVEL

 

A certa altura em certa aldeia haviam certas duas mulheres. A primeira mulher certa não se via, a segunda pouco se destrinçava nas suas formas do contorno da serra ou do recorte dos montes. A primeira mulher era uma fonte, a segunda uma torneira – e a segunda mulher cantava, a primeira sempre gemia. Eram as duas viúvas e ambas desde sempre. Não tinham vizinhos, amigos, enteados ou patrões – e ainda menos maridos, e estes mais do que ilusões. A primeira mulher gemia, a segunda nunca assim se manifestava. Chorava música a segunda, a primeira em caso algum haveria de deixar-se vislumbrar por quem quer que fosse. Porque eram de poucos homens e ainda menos de vaga-lumes, certo dia enamorou-se a primeira por um pastor bastante franco: este, contudo, não podia vê-la. Usou a primeira mulher, apesar de a segunda a desencorajar, todas as artimanhas e mezinhas conhecidas para poder tornar-se visível aos olhos do seu amado – o qual, graças à sua esperteza franca e manifesta desenvoltura de cabeça, merecera entre os outros homens e pastores ali morantes a alcunha de “passarão”. Resultaram, porém, infrutíferas todas essas tentativas – foram esperanças vãs e má fortuna que levaram os anseios ribeira abaixo. Lembrou-se então, a mulher enamorada, de que se a não podia ver, podia ao menos escutá-la o bem-amado: logo se pôs a ciciar para quem quisesse ouvi-las as mais belas canções de amores desamparados. Conhecia-as de cor, num frémito as compôs e alinhavou para seduzir o incauto sequioso que a água de sua amiga, segunda certa mulher com forma mui necessária e evidente, fosse a beber.

Assim foi de tal feitio que veio o pastor beber a água lá pelo meio da tarde implacável e, matreiro como era, compreendeu logo a quem se destinavam as cantigas, só não compreendeu quem as cantava: fechou a torneira, limpou a testa a um lenço de linho azul – um azul suspenso do azul do céu – e arredou com as mãos um canavial que se erguia ali perto, a procurar qualquer rapariga. Nada viu. Não tendo visto mulher alguma, retornou para junto da torneira a apanhar o cajado de cerejeira e a encher o seu cantil: foi então que notou que o som vinha ali mesmo de perto, dum lugar impossível de vazio. Apanhou água fresca nas duas mãos em concha sob aquele sol abrasador, a ver se o canto vinha na alma líquida, mas não lho pareceu escutando de perto. Foi-se a indagar mais junto à torneira e então sim, parece que palpou o óbvio: sustentava-a um tubo recto vindo do chão mas a voz vinha dali, como duma parede invisível à rectaguarda do manípulo; além do exposto, era caso estranho que a água da torneira, ao invés de alagar o chão, se escoasse como por magia supunhamos que pelo ralo duma fonte que, na realidade, ali não estava, pelo menos de tal modo que olhos humanos pudessem vê-la. O “passarão” pragmático palpou o ar nada achando, porém, entre os dedos: viu-se a braços com um dilema e, assim sendo, resolveu solucionar também por meio de som o mistério que o vinha atando. Começou a falar com a fonte, ou melhor, com a voz que cantava chorosa dirigindo-lhe a ele mesmo – já não tinha quaisquer dúvidas a esse respeito – as mais belas elegias. A princípio, Passarão ainda colocara a hipótese de se tratar de alucinação sua resultante do estômago vazio ou horas à torreira, salvo que tomara nesse dia grandessíssimopequeno-almoço e vinha tendo sempre o cuidado de abrigar-se do sol na sombra das árvores ou do guarda-chuva, por cima da boina que tinha por companheira usual. Mas não: a gradação do som indicava, sem mais margens para dúvidas, que a voz vinha dali mesmo, duma parede imaginária por detrás da fonte – tanto assim era que a “alucinação”, acaso o fosse, não o acompanhava no ouvido para onde ele se deslocasse. Empreendeu o pastor, hábil, um fértil diálogo com a primeira mulher, soube-lhe a vida, o formato, a razão dos amores – se razão eles têm que ultrapasse o mero intuir – e comoveu-se. Daquela conversa frutuosa e do mais que se seguiu (que ninguém o soube e é difícil tarefa imaginar) resultou um filho, afilhado da mulher segunda, na aparência todo a mãe e no feitio parecido com o pai, incluindo a esperteza: houve nome esse filho de Passarão Invisível, e grande auxílio prestou durante a sua juventude ao pai, pastoreando o gado com rigorosa, inata discrição.   

 

 

* Estes contos foram editados pela Sinapses [1ª editora portuguesa online, entretanto extinta] em 2007.

 

 

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